O incidente envolvendo os navios ucranianos no Estreito de Kerch, hoje controlado pela Rússia, é mais um perigoso capítulo da crise entre os dois países que há quase cinco anos ameaça a estabilidade no leste europeu.
Filipe Barini | BBC News Brasil
No domingo, três navios da marinha da Ucrânia entraram em águas territoriais russas e realizaram manobras durante algumas horas, sendo então atacados pela frota russa. Três militares ucranianos ficaram feridos, e os navios foram retidos pelos russos.
No domingo, três navios da marinha da Ucrânia entraram em águas territoriais russas e realizaram manobras durante algumas horas, sendo então atacados pela frota russa. Três militares ucranianos ficaram feridos, e os navios foram retidos pelos russos.
Já em 2003 o foco do desentendimento era uma ilha, Tuzla, que fica no estreito de Kerch. A questão foi resolvida com um acordo que, dentre outros pontos, estabelecia que embarcações russas e ucranianas possuíam liberdade de navegação na área. O texto ainda está em vigor – e suas regras seguiram sendo observadas mesmo depois da anexação da Crimeia pela Rússia.
A situação começou a mudar depois da construção da ponte no estreito de Kerch, criando uma ligação terrestre entre a Crimeia e a Rússia continental. O governo da Ucrânia considera a obra ilegal e recebeu o apoio de grande parte da comunidade internacional.
Além da questão diplomática, uma questão prática deixou os ucranianos preocupados.
Com um vão central de 35 metros de altura, a nova ponte limitava a passagem de parte das embarcações com destino ao porto de Mariupol, de onde é escoada boa parte da produção metalúrgica ucraniana. Além disso, os russos passaram a exigir que todos os navios que passassem pela área pedissem autorização prévia e se submetessem a uma inspeção.
Segundo relatos de autoridades ucranianas, algumas destas varreduras chegavam reter os navios por dias. Os russos se defendem dizendo que é apenas uma medida de segurança, para evitar ataques contra a ponte.
No incidente do domingo, os dois lados insistem ter razão. Os ucranianos dizem que cumpriram as exigências das autoridades russas, avisando com antecedência sobre a passagem dos navios por Kerch. A Rússia diz que nunca recebeu qualquer aviso e que a área estava temporariamente fechada para navegação.
A resposta ucraniana foi imediata e surpreendeu pela força. O presidente Petro Poroshenko decretou a lei marcial no país, uma medida que não foi adotada nem durante os piores dias do conflito em Donetsk ou depois da anexação da Crimeia. O governo diz que a situação é crítica – e que age para defender os interesses do povo ucraniano.
Em vigor a partir desta terça-feira, a lei marcial permite que o governo convoque civis para o serviço militar, que institua toque de recolher, restrinja a livre movimentação de pessoas e conduza inspeções e checagem de documentos. Ou seja, em caso eventual de agressão russa, a Ucrânia, em tese, conseguiria se mobilizar mais rapidamente para reagir.
À priori, a lei vale pelos próximos 30 dias em 10 regiões específicas do país, a maioria na fronteira com a Rússia.
Cálculo eleitoral
Mas a situação sugere que um cálculo eleitoral também estaria envolvido. Fatos ligados à soberania e segurança nacional sempre produzem resultados nas urnas, segundo especialistas.
Em março do ano que vem Poroshenko disputa a reeleição e, até o momento, está apenas em terceiro lugar nas pesquisas, lideradas pela ex-premiê Yulia Timoshenko. Poroshenko foi eleito em 2014 prometendo pacificar o país depois da "EuroMaidan", uma onda de protestos de rua pró-União Européia e contra o governo.
Poroshenko prometeu reduzir a influência russa no país, modernizar o governo e atacar a corrupção. Das promessas, pouco saiu do papel. A economia ainda se recupera a passos lentos depois de muitos anos de recessão, o leste vive uma guerra sem qualquer perspectiva de terminar e a corrupção na sociedade segue mais viva do que nunca. Não é de se espantar que esteja tão mal nas pesquisas.
O presidente ucraniano tenta, assim, jogar a crise a seu favor.
Para o cientista político Ian Bremmer, presidente da consultoria Eurasia Group, chama a atenção o fato de Poroshenko não ter usado a lei marcial em nenhum momento de sua Presidência. Mas, agora, a alguns meses da eleição, a conversa parece ser outra.
Em artigo recente publicado pela agência de notícias Bloomberg, o jornalista russo Leonid Bershidsky reforça essa ideia, lembrando que o lema da campanha à reeleição é "Exercito, Língua, Fé", um tom nacionalista, que potencialmente tem muito a ganhar com a crise.
Alguns acreditam que a situação possa caminhar para um conflito armado, ainda mais com o fato de o presidente Poroshenko ter deixado a possibilidade em aberto no decreto publicado nesta segunda-feira.
Leonid Bershidsky afirma que nenhum dos dois lados está interessado em abrir uma nova frente de batalha. Já o cientista político e professor de relações internacionais da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) Maurício Santoro acredita que o momento pode, sim, levar a mais violência, ainda mais com uma liderança em busca de legitimidade dentro do país.
"Sempre existe a possibilidade do conflito se tornar mais violento diante das sucessivas crises dos governos russo e ucraniano, e a possibilidade de que eles tentem usar essa cartada do conflito internacional para ganhar popularidade internamente. Esse é o principal risco que a gente tem visto no confronto entre os dois países."
Bershidsky também considera que o presidente russo, Vladimir Putin, deve tentar usar o caso a seu favor. Ele não enfrenta os melhores dias de seu governo, com índices de popularidade em queda por causa do plano da reforma da previdência, que vai elevar a idade mínima para a aposentadoria. Os russos também contam com uma certa resistência da comunidade internacional em condenar o país.
Como os EUA e a Europa reagirão?
Até agora não foram feitas declarações fortes ou promessas de novas medidas, como sanções econômicas.
Em reunião de emergência no Conselho de Segurança da ONU a embaixadora dos EUA, Nikki Haley, disse que a ação russa foi "ultrajante". O presidente Donald Trump afirmou apenas que a Casa Branca "não está feliz com a situação".
Mas para Mauricio Santoro, a reação americana deve mesmo ficar apenas nas palavras.
"Trump, desde a campanha presidencial (de 2016), tem sido critico das abordagens mais duras com relação à Rússia e basicamente apresentando a ideia de que as ações russas na europa oriental, inclusive na Ucrânia, não seriam uma razão de ameaça à segurança americana. Isso vem com o esforço de Trump para que os europeus paguem mais a conta da Otan, entrem com um apoio maior na questão da segurança internacional", diz o professor.
"Por isso, não podemos imaginar por parte do Trump uma resposta mais incisiva sobre a crise russa. Essa resposta, se vier, virá da União Europeia, principalmente da Alemanha, que vai tentar uma mediação, um diálogo maior com o governo Putin", diz ele.
Até agora a Casa Branca não informou se Trump vai tratar da recente crise no Mar de Azov na reunião bilateral que terá com Vladimir Putin na reunião de líderes do G-20, esta semana, na Argentina. A informação, até agora, é a de que o encontro está mantido.