EL PAÍS teve acesso a documentos até agora secretos, guardados numa instalação do Exército em Ávila. Vigilância abrangia correspondências dos recrutas e o papa João XXIII
Miguel González | El País
Madri - Outubro de 1968. Passaram-se cinco meses do maio francês, e a universidade espanhola está em ebulição. O Serviço de Inteligência Militar da Marinha da Espanha informa que “começou a ser montado o Serviço de Escuta na Universidade, o qual consta de aproximadamente seis trios distribuídos entre as diferentes faculdades. Graças a esse serviço, começa a auscultar-se bem mais de perto a realidade universitária de Barcelona”. A comunicação dos espiões militares prenuncia iminentes “algazarras de caráter revolucionário”.
Um dos documentos do arquivo de Ávila |
Esta nota está incluída em uma das 1.022 caixas com documentos da Segunda Seção (Inteligência) do Estado Maior Central do Exército espanhol, guardados no Arquivo Geral Militar de Ávila (107 quilômetros a noroeste de Madri). Em 20 de setembro, a ministra espanhola da Defesa, Margarita Robles, autorizou, embora com muitas limitações, o acesso aos relatórios secretos anteriores a 1968, quando entrou em vigor a atual Lei de Segredos Oficiais daquele país, que abarcam parte do período da ditadura de Francisco Franco (1939-1975). Durante quase três semanas, o EL PAÍS mergulhou numa documentação que ainda não foi informatizada, catalogada nem descrita, e cuja consulta está restrita a pesquisadores.
A nota que informa sobre a instalação de sistemas de escuta na Universidade de Barcelona não é um caso isolado. Outro relatório, de dezembro de 1961, relata as queixas contra o aumento de preços no refeitório da Faculdade de Filosofia e Letras de Madri. Os líderes do protesto eram três estudantes: Fernando Sánchez Dragó, Luis Gómez Llorente e Alberto Míguez, “todos pró-comunistas e socialistas”. Recuperada a democracia, o primeiro deles ganharia o Prêmio Nacional de Ensaio, o segundo chegaria a vice-presidente do Congresso dos Deputados pelo PSOE, e o terceiro se tornaria jornalista do diário La Vanguardia.
Que fazia o Exército franquista fuçando na universidade? O capitão-geral (chefe da guarnição militar) de Burgos escreve em agosto de 1959 a um amigo seu, chefe do Estado-Maior Central, reclamando que seus subordinados precisam se dedicar à “vigilância de elementos civis suspeitos, estabelecimento de estrangeiros em populações costeiras, entrada e saída de navios” e outras tarefas que “os distraem da sua missão principal, que considero ser a informação interna dos corpos”.
O chefe do serviço de informação se vê obrigado a justificar sua tarefa. “Este serviço ausculta todas ou quase todas as atividades da Nação. [O combate a] conflitos sociais, greves, paralisações operárias e atividades extremistas está ligado ao vital interesse nacional, tanto ou mais que o puramente militar”, escreve.
Dentro da segunda seção havia um órgão ainda mais secreto: a chamada Segunda Bis. Se a parte visível era responsável pela informação operacional e estratégica, com o apoio fundamental dos adidos militares, a oculta se dedicava a espionar supostos inimigos do regime, com o auxílio de equipamentos em todas as regiões militares e uma rede de informantes dentro e fora da Espanha. A Segunda Bis é a única unidade do Estado-Maior Central que dispunha de verba para gastos secretos. Em 1957, era de 311.455 pesetas (cerca de 430.000 reais, pelo valor atual). Uma fortuna para um país subdesenvolvido como a Espanha daquela época, cuja renda per capita era equivalente a um décimo da atual.
A Segunda Bis do Exército de Terra (e em menor medida da Marinha e da Força Aérea) foi parte do tripé de sustentação do aparato de espionagem política da ditadura, junto com o Serviço de Informação da Guarda Civil e a Brigada Político-Social da Polícia. Só no final do franquismo viria a ceder essa função ao Serviço Central de Documentação (Seced) da Presidência do Governo, criado em 1972 pelo almirante Carrero Blanco.
Na década de 1940, a máxima preocupação da Segunda Bis e do próprio regime eram os vermelhos exilados na França e os maquis guerrilheiros antinazistas da França que em outubro de 1944 protagonizam uma tentativa de invasão do vale de Arán (Catalunha), que acabou em fiasco por não resultar na esperada sublevação popular no interior da Espanha.
Em 19 de dezembro de 1939, oito meses depois do fim da Guerra Civil, o Estado-Maior francês informou ao adido de Franco em Paris que “o número de milicianos [espanhóis] presentes na França é de 98.000 aproximadamente. A maior parte deles”, especifica, “serve como voluntários em companhias de trabalhadores ou foram alocados na indústria e agricultura”. Além disso, acrescenta, “há nos campos 40.000 refugiados adicionais, entre crianças e idosos”. O adido tranquiliza Madri anunciando que “até o final do ano só restarão nos campos do sudoeste [junto à fronteira espanhola] pouquíssimos milicianos, quase todos mutilados, doentes incuráveis ou homens fisicamente inaptos para qualquer emprego”.
Em maio de 1940, a Alemanha nazista invade a França. Os refugiados espanhóis iniciam um segundo exílio, são deportados para campos de concentração ou aderem à resistência.
Depois da derrota de Hitler, o regime franquista se torna um pária. Um telegrama do Estado-Maior Central em 10 de janeiro de 1947, dirigido às três capitanias-gerais dos Pirineus, informa que “[o] Governo espanhol tem notícias [do] iminente reconhecimento [do] Governo Giral pelo francês. [...] Prevendo possíveis incidentes [na] fronteira, o Ministro [do Exército] ordena que sejam reforçadas as medidas de vigilância, interrompendo os acessos à mesma”.
O temor do regime não se materializou. O Governo republicano espanhol no exílio, comandado por José Giral, não foi reconhecido pela França, só por alguns países latino-americanos, e se dissolveu pouco tempo depois por causa das divisões nas forças antifranquistas.
Os relatórios diários da Segunda Bis nos primeiros anos do franquismo parecem informes de guerra. Dez anos depois do fim da Guerra Civil (1936-39), as planilhas do Estado-Maior Central refletem uma média de 40 “rebeldes” mortos por mês.
Faziam-se poucos prisioneiros. O boletim de 2 de abril de 1949 resenha laconicamente que “em 29 de março, forças da Guarda Civil procederam à detenção de dois cúmplices dos bandoleiros em Vega del Codorno (Cuenca), os quais, quando eram conduzidos, tentaram fugir, por isso abriu-se fogo contra eles, resultando em sua morte”. Essa prática tão frequente tinha o nome de lei de fugas.
A atitude das autoridades francesas foi se alterando em favor da ditadura e contra os republicanos. Em 1948, a França reabre a fronteira, e o adido de Franco em Paris informa que os exilados espanhóis são obrigados a informar à polícia francesa sobre todos os seus deslocamentos. Os serviços de informação do país vizinho, relata em 1949, têm uma “nítida orientação anticomunista” e “grampearam os telefones” dos comunistas espanhóis.