Recente incidente perigoso entre os navios militares chinês e estadunidense reabre a discussão sobre segurança e provocações no oceano global. A Sputnik explica como funciona o sistema de prevenção de tais casos e como eles são muitas vezes usados para manifestar pretensões políticas.
Sputnik
As notícias sobre aproximações perigosas entre navios e aviões militares de diferentes países, muitas vezes antagonistas, marcam frequentemente as manchetes da mídia internacional. De costume, são seguidos por trocas de acusações mordazes, porém, raramente resultam em conflitos reais.
USS Decatur e navio de guerra chinês Luyang no Mar do Sul da China |
Tensão sino-americana
Até anteontem, a crescente confrontação ideológica e econômica entre Pequim e Washington não tinha se alastrado ao setor militar, em primeiro lugar por uma certa passividade da parte chinesa. A coisa é que a aproximação de navios estadunidenses das ilhas disputadas do mar do Sul da China, consideradas pelos chineses como seu território soberano, tem se tornado um fenômeno bem frequente, porém, ele ainda nunca provocou nenhuma resposta prática por parte da Marinha do país asiático.
A tendência foi quebrada em 2 de outubro, quando o destróier estadunidense USS Decatur e o navio de guerra chinês Luyang se enfrentaram perto do recife Gaven, que faz parte das Ilhas Spratly. Neste caso, os militares chineses decidiram, em vez de não reagirem e se limitarem a um subsequente protesto oficial, empreender medidas resolutas ou, de fato, "expulsar" o visitante inoportuno das águas em disputa.
Isso, sublinham especialistas, deve ser entendido como um fator de grande importância para a política exterior chinesa, mesmo que parecendo um evento menor. O país, que nunca na sua história moderna se envolveu em quaisquer provocações de caráter militar e sempre se posicionou muito reservado nessas questões, o que por muitos era considerado como indicador de fraqueza, parece estar começando a defender seus interesses em todos os níveis.
Vale ressaltar que nesta situação peculiar o problema-chave, que pode acarretar grandes riscos no futuro, consiste na ausência de fato de uma regulamentação legal das movimentações das diferentes marinhas no mar do Sul da China. Sendo um território reclamado por Pequim, apesar das decisões de órgãos internacionais, as respectivas águas recentemente viraram alvo da política de liberdade de navegação promovida pelos EUA, com apoio por parte dos seus aliados e com uma evidente tentativa de conter o reforço da China como potência, tanto econômica como militar.
Nesse sentido, é crucial um eventual processo de negociações sobre um mecanismo que ajude a prevenir incidentes na área, como acontece hoje em dia no caso de Tóquio e Pequim, porém, este parece ser impossível devido ao estatuto disputado dos territórios.
Casos semelhantes
Hoje em dia, os dois atores no espaço marítimo e aéreo que parecem estar gerando o maior número de incidentes são a OTAN, muitas vezes representada pelos EUA, e a Rússia. Embora o relacionamento entre as duas últimas potências nesta esfera seja regulado desde 1972 pelo Acordo sobre Prevenção de Incidentes no Mar Aberto e no Ar, tais casos têm sido regulares ainda desde a época soviética.
A frequência com que esses incidentes acontecem levou vários altos responsáveis oficiais a falarem sobre a necessidade de se renovar o documento, porém, as relações perturbadas entre os dois países parecem não ter contribuído para a iniciativa, que acabou não sendo realizada. O fator da Síria, onde os militares russos e estadunidenses também estabeleceram um canal especial para troca de informações, também pode ter desviado a atenção.
Entre os casos dessa espécie mais repercutidos podemos relembrar os relacionados com o destróier estadunidense USS Donald Cook, equipado de mísseis Tomahawk. Por exemplo, em 10 de abril de 2014 o navio, que tinha acabado de entrar nas águas do mar Negro, foi sobrevoado por bombardeiros táticos russos Su-24 em proximidade perigosa, o que causou relatos sobre "desmoralização" dos marinheiros norte-americanos e consequente protesto por parte do Pentágono. Episódios parecidos também ocorreram no período posterior.
Já em junho de 2016, por exemplo, o destróier USS Gravely cortou o caminho da fragata russa Yaroslav Mudry na parte oriental do mar Mediterrâneo, se aproximando a 60-70 metros do navio e passando na direção de sua proa por 180 metros. O caso, que se deu em águas abertas de uso internacional, provocou acusações de ambos os lados.
De fato, a lista pode ser extremamente longa, e parece seguir cada vez quase o mesmo cenário — demonstração de força (sem quaisquer danos materiais) e ulterior troca de declarações fortes. Alguns especialistas consideram o fenômeno como repetição dos padrões da Guerra Fria, outros — como uma realidade normal que não pode ser evitada no caso de grandes potências com ambições marítimas. Ao mesmo tempo, ambos concordam que os incidentes são frequentemente exagerados graças à cobertura midiática pretensiosa.
Por que isso acontece?
Na verdade, dado o nível de desenvolvimento dos equipamentos de bordo hoje em dia, a chance de um encontro "por acaso" no mar ou no espaço aéreo parece algo surreal. Por isso, os respectivos casos servem frequentemente de simples demonstração, ou seja, a pretensão de um ou outro país à sua presença em certa região. É algo muito menos grave do que uma confrontação militar real, mas, ao mesmo tempo, mais convincente que meros discursos diplomáticos.
No caso do atual enfrentamento entre a China e os EUA, fica evidente que essas "manobras" ousadas servem para demonstrar suas posições, especialmente no que se trata dos territórios disputados. Pequim insiste em que eles estão sob sua soberania, continuando a construir lá inclusive "ilhas artificiais", enquanto Washington não larga seu conceito de liberdade de navegação nessas águas.
Nessa lógica, as aproximações perigosas de fato não passam de um "espetáculo". Porém, este não deixa de ser perigoso. Uns 40-50 metros entre grandes navios de guerra é uma distância crítica, que pode terminar tragicamente mesmo contra a vontade dos envolvidos. Por isso, seria melhor que ambos lados não adquirissem um gosto por isso.