Objetivo do projeto é a proteção de lavouras, mas cientistas europeus temem seu possível uso como arma biológica
Miguel Ángel Criado | El País
Quatro equipes de cientistas dos EUA pesquisam vírus geneticamente modificados para que possam alterar o DNA das lavouras. Para propagar o vírus, seriam usadas várias espécies de insetos também modificadas. O objetivo declarado do programa, financiado pelos militares, é proteger as colheitas de uma seca repentina, geadas... ou um ataque externo. No entanto, outros pesquisadores alertam agora que os insetos com os vírus mutantes podem se tornar uma arma biológica descontrolada.
Uma instância de mosca branca, em uma planta infetada. AUSCAPE/UIG VIA GETTY IMAGES |
A Agência de Projetos de Pesquisa Avançada de Defesa(DARPA na sigla em inglês), que pertence ao Departamento de Defesa dos EUA, divulgou sua ideia de transformar insetos nocivos em aliados em 2016, embora os quatro projetos selecionados para o programa Insect Allies só tenham sido anunciados no fim do ano passado. Tudo neles é ciência e tecnologias extremas, no limite da ficção científica.
As quatro pesquisas ocorrem paralelamente e todas têm os mesmos três elementos: um vírus ou bactéria, um inseto e uma planta-alvo. Na pesquisa conduzida por pesquisadores da Universidade da Pensilvânia (Penn State), por exemplo, os cientistas querem usar vírus do gênero Begomovirus, que ataca plantações como a as de tomate, para proteger as plantas do mau tempo. A intenção é, depois de neutralizar sua carga viral, adicionar-lhe um determinado gene vegetal que expresse uma característica protetora, como maior resistência ao frio, por exemplo. Para propagar o vírus, cogitam usar uma das piores pragas do tomate, a mosca branca.
“Hoje, um agricultor não pode fazer muito para salvar sua safra se as previsões meteorológicas apontarem uma forte seca para o próximo mês”, disse o líder do projeto da Penn State, Wayne Curtis, depois de ter sido um dos selecionados pela DARPA. “Embora possamos desenvolver uma variedade da planta que aguente um tipo de estresse, a natureza das novas doenças e pragas ameaça suplantar as melhorias proporcionadas pela reprodução tradicional e as modificações genéticas. Procuramos desenvolver uma tecnologia que dê uma resposta rápida que permita a distribuição de genes que protejam as plantas quando o necessitem, já plantadas”, acrescentou.
Essa rapidez de reação é uma das grandes novidades do Insect Allies. Até agora, as variedades de plantas com uma determinada melhoria precisam de anos para se desenvolver e, uma vez obtida, acrescentá-la às sementes para o próximo plantio. Aqui pretendem inseri-la em plantas já adultas. Seria então uma transferência horizontal, não vertical. Outra inovação é o uso da técnica de edição genética CRISPR para modificar o gene vegetal alvo com a ajuda do vírus. Em relação à manipulação de insetos, embora não tenham sido divulgados detalhes de como seria realizada, já existem experimentos que conseguiram fazê-la em um processo de evolução forçada chamado genética dirigida.
“O programa Insect Allies tem pouco a ver com a genética dirigida, pois propõe usar insetos para transmitir mutações às culturas, não aos membros de sua própria espécie”, lembra o biólogo do Instituto Max Planck de Biologia Evolutiva (Alemanha), Derek Caetano-Anollés. “Qualquer um que tenha se preocupado com a genética dirigida deveria estar muito mais preocupado com o Insect Allies”, acrescenta.
Junto com outros biólogos europeus, Caetano-Anollés publicou um artigo na revista Science que alerta sobre os riscos do programa da DARPA. O documento é parte de uma iniciativa maior que busca desmantelar o Insect Allies antes que possa ter sucesso. Os autores reconhecem que esse tipo de tecnologia pode ter muitos usos positivos, mas também um uso duplo: a guerra biológica.
“O que nos preocupa é que a tecnologia do Insect Allies pode ser convertida facilmente em uma arma. Pior ainda, pode ser feita de uma maneira extremamente encoberta e difícil de rastrear. Os insetos podem ser projetados para infectar as culturas de um inimigo, matando as plantas ou esterilizando suas sementes, e ninguém saberia o que teria acontecido até o plantio seguinte”, diz Caetano-Anollés.
Portanto, outra crítica que esses biólogos fazem aos planos da DARPA é a sua fixação em que se usem precisamente insetos para propagar os vírus. Para os autores do artigo, existem tecnologias de dispersão mecânica tão ou mais eficazes e mais controláveis que a liberação de milhares ou milhões de insetos com um vírus nas costas. Mas a principal denúncia é que o Insect Allies pode ser a desculpa para outros países desenvolverem seus próprios programas baseados no programa. Como diz o biólogo do Max Planck: “No pior dos casos, isso já pode estar acontecendo e os EUA já podem ter aberto a caixa de Pandora que mudará a guerra para sempre, independentemente de o programa da DARPA funcionar ou não”.
A agência norte-americana reconhece o risco de um possível duplo uso da tecnologia, algo que, considera, sempre acompanha uma novidade como essa. Ainda assim, o diretor do Insect Allies, o entomologista Blake Bextine, defende seu programa do resto das críticas lembrando o objetivo para o qual foi criado: “A DARPA criou o Insect Allies para oferecer novas capacidades para proteger os EUA, especialmente a de responder rapidamente às ameaças ao fornecimento de alimentos”, diz Bextine.
COMO TRANSFORMAR VÍRUS E PRAGAS EM ALIADOS
O programa Insect Allies, iniciado no ano passado, selecionou quatro projetos diferentes, dos quais participam cientistas de várias universidades dos EUA. Não há praticamente nenhuma informação detalhada sobre eles e apenas os diretores de dois projetos responderam às perguntas deste jornal.
Além do projeto com vírus e mosca branca no tomate da Penn State (ver texto principal), dois outros trabalham com o milho, o principal produto da agricultura norte-americana. Um deles, lançado por biólogos moleculares e entomologistas da Universidade Estadual de Ohio, tem como objetivo resgatar as plantas de milho uma vez que sejam atacadas por patógenos mediante vírus manipulados. Para isso, o projeto ainda tem de identificar os genes da planta a serem trabalhados.
Apenas um dos projetos, o liderado pelo biólogo molecular da Universidade do Texas em Austin, Jeffrey Barrick, não usa vírus para modificar as plantas. Neste caso, a equipe pesquisa uma bactéria hospedeira de um pulgão que ataca as vagens. No caso do Instituto Boyce Thompson, os cientistas dispõem de quatro anos (atualmente três) e 10 milhões de dólares para o projeto VIPER. Estão trabalhando com cicadélidos, insetos conhecidos como cigarrinhas, no cultivo do milho.
Um elemento essencial do programa é a segurança. Cada um dos quatro projetos tem de criar uma chave de segurança para cada elemento do sistema (vírus, insetos e planta) que possa ser ativada em uma emergência, ou que limite o alcance geográfico ou temporal de seus efeitos. Entre as medidas está a liberação de insetos estéreis ou com um período de vida mais curto. Inclusive estão trabalhando para que a vantagem adquirida pela planta graças ao vírus seja temporária.
Georg Jander, chefe do projeto VIPER, explica uma das possíveis medidas de segurança: “Determinados genes nos vírus são necessários apenas para a transmissão pelos insetos, mas não para sua replicação e infecção das plantas. Se alguém obtém uma planta geneticamente modificada que expressa esse gene, o vírus pode fazer uso da proteína codificada e ser transmitido pelos insetos. No entanto, se o inseto transmite o vírus a uma planta não projetada, por exemplo, em um campo de milho, o vírus pode infectar a planta, mas não pode ser retransmitido”.