Um romance ressuscita a história de Margot Wölk, única sobrevivente do grupo de 15 provadoras organizado para que o ditador não morresse envenenado
Juan Carlos Galindo | El País
Todas as manhãs, durante quase dois anos, Margot Wölk (Berlim, 1917- 2014) percorria de ônibus, escoltada por soldados da SS, a distância que separava a casa de seus sogros, na Prússia Oriental, da Toca do Lobo, o complexo militar de onde Hitler tentava não perder a II Guerra Mundial. Ali ela ingeria, angustiada, manjares ao alcance de pouquíssima gente naquela Alemanha devastada pela economia de guerra, consciente de que cada bocado podia ser o último.
Margot Wölk em Berlim, em 2013 | MARKUS SCHREIBER (AP) |
Wölk era uma das 15 mulheres que provavam a comida de Hitler antes de suas refeições, para evitar que ele morresse envenenado por seus inimigos – reais ou imaginados – e a única que sobreviveu à luta, depois da qual mergulhou num silêncio que durou décadas e que só rompeu no final de sua vida. Agora, Rosella Postorino (Reggio Calabria, 1978) levou para a ficção esta história de luta pela sobrevivência, amor e culpa, no romance Le Assaggiatrici (“as provadoras”, inédito no Brasil).
“Ela manteve Hitler e o nazismo vivos. Não era da SS, mas esteve em contato com o mal absoluto, apaixonou-se por um nazista, perdeu pessoas que amava e que não soube proteger, e sentia uma culpa enorme por tudo isso. Afinal sobreviveu, como tantas mulheres desse século, mas para viver como uma pessoa que não tinha redenção possível”, diz Postorino ao EL PAÍS, referindo-se à protagonista do seu romance, Rosa Sauer, e a Wölk como se fossem uma única mulher.
Le Assaggiatrici fala do instinto de sobrevivência que prevalece acima do horror. Wölk escapou do refúgio dos líderes nazistas no trem de Goebbels, no qual embarcou graças a um agente da SS com quem mantinha um relacionamento amoroso. Suas colegas foram fuziladas pelo Exército Vermelho. Depois de sobreviver, e colaborar com a barbárie nazista, foi vítima da brutalidade dos soldados soviéticos que a estupraram e maltrataram durante 14 dias. Depois vieram um muro de silêncio, a lembrança do horror, a culpa do sobrevivente, da qual fala Primo Levi.
Hitler não comia bem, e sua dieta era um escândalo de desequilíbrios, com certa predileção pelos grãos de soja. Ele tinha sérios problemas estomacais e se entupia de comprimidos contra a flatulência. As provadoras tinham que experimentar todos os pratos uma hora antes e esperar para ver se estava em condições ou, pelo contrário, se elas iriam morrer envenenadas. Algumas choravam enquanto engoliam. Para Wölk, comer nunca voltou a ser a mesma coisa. “A vizinha de Margot em Berlim me disse, quando eu fazia pesquisa para o romance, que ela era uma pessoa difícil à mesa. O ato de comer, o gesto principal que fazemos todos para poder viver, foi alterado a partir daquele momento pela experiência de ter sido provadora de Hitler, e isso ela nunca poderia superar”, reflete Postorino.
Wölk arriscava a vida por Hitler três vezes ao dia, mas nunca o conheceu. O ditador aparece no romance sempre pela boca de outros, como divindade ou ridicularizado, “alguém que dispõe da vida de outros, mas que é invisível”. O humor e a ironia permeiam o livro como fizeram também na vida real dessas jovens transformadas em escravas. Postorino acredita que essa é “uma das poucas maneiras que temos de sobreviver diante do horror”. Quando perguntada sobre a escolha pela narrativa em primeira pessoa, a escritora italiana fala da obsessão que o caso se tornou para ela após conhecê-lo, da posterior frustração com a morte de Wölk, na mesma semana em que deveria entrevistá-la, e sobre o recurso à ficção com uma pergunta que vai sempre guiando a ação literária: “O que eu teria feito numa situação de precariedade existencial tamanha que tivesse me empurrado a fazer essa concessão: arriscar minha vida três vezes ao dia para sobreviver?”.
“Ela manteve Hitler e o nazismo vivos. Não era da SS, mas esteve em contato com o mal absoluto, apaixonou-se por um nazista, perdeu pessoas que amava e que não soube proteger, e sentia uma culpa enorme por tudo isso. Afinal sobreviveu, como tantas mulheres desse século, mas para viver como uma pessoa que não tinha redenção possível”, diz Postorino ao EL PAÍS, referindo-se à protagonista do seu romance, Rosa Sauer, e a Wölk como se fossem uma única mulher.
Le Assaggiatrici fala do instinto de sobrevivência que prevalece acima do horror. Wölk escapou do refúgio dos líderes nazistas no trem de Goebbels, no qual embarcou graças a um agente da SS com quem mantinha um relacionamento amoroso. Suas colegas foram fuziladas pelo Exército Vermelho. Depois de sobreviver, e colaborar com a barbárie nazista, foi vítima da brutalidade dos soldados soviéticos que a estupraram e maltrataram durante 14 dias. Depois vieram um muro de silêncio, a lembrança do horror, a culpa do sobrevivente, da qual fala Primo Levi.
Hitler não comia bem, e sua dieta era um escândalo de desequilíbrios, com certa predileção pelos grãos de soja. Ele tinha sérios problemas estomacais e se entupia de comprimidos contra a flatulência. As provadoras tinham que experimentar todos os pratos uma hora antes e esperar para ver se estava em condições ou, pelo contrário, se elas iriam morrer envenenadas. Algumas choravam enquanto engoliam. Para Wölk, comer nunca voltou a ser a mesma coisa. “A vizinha de Margot em Berlim me disse, quando eu fazia pesquisa para o romance, que ela era uma pessoa difícil à mesa. O ato de comer, o gesto principal que fazemos todos para poder viver, foi alterado a partir daquele momento pela experiência de ter sido provadora de Hitler, e isso ela nunca poderia superar”, reflete Postorino.
Hitler, em um almoço no campo HULTON ARCHIVE GETTY IMAGES |
Wölk arriscava a vida por Hitler três vezes ao dia, mas nunca o conheceu. O ditador aparece no romance sempre pela boca de outros, como divindade ou ridicularizado, “alguém que dispõe da vida de outros, mas que é invisível”. O humor e a ironia permeiam o livro como fizeram também na vida real dessas jovens transformadas em escravas. Postorino acredita que essa é “uma das poucas maneiras que temos de sobreviver diante do horror”. Quando perguntada sobre a escolha pela narrativa em primeira pessoa, a escritora italiana fala da obsessão que o caso se tornou para ela após conhecê-lo, da posterior frustração com a morte de Wölk, na mesma semana em que deveria entrevistá-la, e sobre o recurso à ficção com uma pergunta que vai sempre guiando a ação literária: “O que eu teria feito numa situação de precariedade existencial tamanha que tivesse me empurrado a fazer essa concessão: arriscar minha vida três vezes ao dia para sobreviver?”.
AMOR E MORTE NA BARBÁRIE
Quando Rosella Postorino ficou sabendo do caso de Margot Wölk, lançou-se numa corrida desesperada para falar com ela, que se frustrou com sua morte. Empenhada em contar a história, Postorino se documentou a fundo para construir a ficção. "Para ser fiel ao contexto histórico, tive que estudar muitíssimo: a alimentação do Führer, as receitas dos pratos que comia, cartas, entrevistas, livros, escutas telefônicas, testemunhos, perfis psicológicos, romances ambientados nessa época... Um estudo muito vasto, que me permitiu conhecer os detalhes para dar credibilidade ao relato", conta a autora de Le Assaggiatrici (Premio Campiello na Itália), esclarecendo que apenas esse contexto e as linhas gerais da vida de Wölk (chamada Rosa Sauer), são reais.
A escritora Rosella Postorino |
O resto fica para a ficção. "No meu romance, o que se depreende é que estas mulheres que estão sendo tratadas como cobaias, que estão em uma prisão, são quase escravas, embora sejam pagas, e a única maneira de sobreviver é com relações que contemplem a frivolidade, as brigas por uma tolice... e sobretudo que todas elas com sua dignidade esmagada recorrem ao amor como forma de defender a dignidade do ser humano", conta.