O reconhecimento de Jerusalém como capital de Israel pelos Estados Unidos e a transferência da embaixada americana de Tel Aviv para a cidade, concretizada nesta segunda-feira, foram o estopim dos confrontos mais mortíferos registrados entre israelenses e palestinos desde 2014.
BBC Brasil
Autoridades palestinas condenaram o que chamaram de um "massacre" cometido por forças israelenses, acusadas de matar pelo menos 58 manifestantes e deixar 2,7 mil feridos, enquanto o governo de Israel afirmou estar se defendendo de 40 mil palestinos que participavam de "atos de vandalismo violentos" e tentavam romper a cerca de segurança que demarca seu território na Faixa de Gaza.
Autoridades palestinas condenaram o que chamaram de um "massacre" cometido por forças israelenses, acusadas de matar pelo menos 58 manifestantes e deixar 2,7 mil feridos, enquanto o governo de Israel afirmou estar se defendendo de 40 mil palestinos que participavam de "atos de vandalismo violentos" e tentavam romper a cerca de segurança que demarca seu território na Faixa de Gaza.
Confrontos de segunda-feira foram os mais violentos desde 2014 | AFP |
O presidente americano, Donald Trump, celebrou a medida em um pronunciamento. "Israel é uma nação soberana que tem o direito de determinar qual é sua capital, mas nós falhamos por muito tempo em reconhecer o óbvio", declarou Trump. Segundo ele, os Estados Unidos continuam "comprometidos em viabilizar um acordo de paz duradouro".
Por sua vez, o presidente da Autoridade Palestina, Mahmoud Abbas, descreveu a decisão de Trump como o "tapa na cara do século" e disse que os Estados Unidos não são mais considerados por ele como um "mediador do conflito no Oriente Médio".
Jerusalém está no centro do conflito que já dura mais de 70 anos entre israelenses e palestinos - ambos veem a cidade como sagrada e a reivindicam como capital. Os recentes desdobramentos abrem mais um capítulo na história de animosidade entre os dois povos.
A disputa pela cidade, sagrada não só para judeus e muçulmanos, mas também para cristãos, é quase tão antiga quanto a briga por territórios entre israelenses e palestinos - e a decisão tomada pelo presidente Trump foi vista como um risco às negociações de paz na região.
A BBC responde a oito perguntas básicas para entender por que esse conflito é tão complexo e polarizado.
1. Como o conflito começou?
O movimento sionista, que procurava criar um Estado para os judeus, ganhou força no início do século 20, em reação ao antissemitismo sofrido por eles na Europa.
A região da Palestina, entre o rio Jordão e o mar Mediterrâneo, considerada sagrada para muçulmanos, judeus e cristãos, pertencia ao Império Otomano naquele tempo e era ocupada, principalmente, por muçulmanos e outras comunidades árabes. As aspirações sionistas deram início a um forte movimento migratório judaico, que gerou resistência entre as comunidades locais.
Após a desintegração do Império Otomano, na Primeira Guerra Mundial, o Reino Unido recebeu um mandato da Liga das Nações, órgão internacional antecessor da Organização das Nações Unidas (ONU), para administrar o território da Palestina.
Antes e durante a guerra, contudo, os britânicos fizeram, tanto aos árabes quanto aos judeus, uma série de promessas que não se cumpririam - entre outras razões, porque o Reino Unid já havia repartido o Oriente Médio com a França. Isso provocou um clima de tensão entre os dois lados que acabou em confrontos entre grupos paramilitares judeus e árabes.
Após a Segunda Guerra Mundial e o Holocausto, aumentou a pressão pelo estabelecimento de um Estado judeu. O plano original previa a partilha do território controlado pelos britânicos entre judeus e palestinos.
Após a fundação de Israel, em 14 de maio de 1948, a tensão deixou de ser local para se tornar uma questão regional. No dia seguinte, Egito, Jordânia, Síria, Iraque e Líbano invadiram o território. Foi a primeira guerra árabe-israelense, também conhecida pelos judeus como a guerra de independência ou de libertação. Depois da guerra, vencida pelos israelenses, o território originalmente planejado pela ONU para um Estado árabe foi reduzido pela metade.
Para os palestinos, começava ali a Nakba, palavra em árabe para "destruição" ou "catástrofe". A data é relembrada anualmente como o dia em que 750 mil palestinos deixaram suas casas e fugiram para países vizinhos ou foram expulsos por tropas israelenses.
Mas 1948 era apenas o início do longo confronto entre os dois povos. Em 1956, Israel enfrentou o Egito em uma crise motivada pelo Canal de Suez, conflito que foi definido fora do campo de batalha, com a confirmação pela ONU da soberania egípcia sobre a passagem naval, após forte pressão internacional sobre Israel, França e Grã-Bretanha.
Em 1967, veio a batalha que mudaria definitivamente o cenário na região: a Guerra dos Seis Dias. Iniciada por ofensivas de Egito e Síria, a disputa terminou com vitória esmagadora de Israel sobre uma coalizão árabe. Após o conflito, Israel ocupou a Faixa de Gaza e a Península do Sinai, no Egito, tomou o controle da Cisjordânia (incluindo Jerusalém Oriental) da Jordânia e das Colinas de Golã da Síria. Meio milhão de palestinos fugiram.
Israel e seus vizinhos voltaram a se enfrentar em 1973. A Guerra do Yom Kippur colocou novamente Egito e Síria contra Israel, numa tentativa dos árabes de recuperar os territórios ocupados em 1967. Em 1979, o Egito se tornou o primeiro país árabe a chegar à paz com Israel, que desocupou a Península do Sinai. A Jordânia chegaria a um acordo de paz em 1994.
2. Por que Israel foi fundado no Oriente Médio?
A religião judaica diz que a área em que Israel foi fundado é a terra prometida por Deus ao primeiro patriarca, Abraão, e seus descendentes.
A região foi invadida pelos antigos assírios, babilônios, persas, macedônios e romanos. Roma foi o império que nomeou a região como Palestina e, sete décadas depois de Cristo, expulsou os judeus de suas terras depois de lutar contra os movimentos nacionalistas que buscavam independência.
Com o surgimento do islã, no século 7 d.C., a Palestina foi ocupada pelos árabes e depois conquistada pelas cruzadas europeias. Em 1516, estabeleceu-se o domínio turco, que durou até a Primeira Guerra Mundial, quando o mandato britânico foi imposto.
A Comissão Especial das Nações Unidas para a Palestina disse em seu relatório à Assembleia Geral em 3 de setembro de 1947 que as razões para estabelecer um Estado judeu no Oriente Médio eram baseadas em "argumentos a partir de fontes bíblicas e históricas" e na Declaração de Balfour de 1917, em que o governo britânico se posicionou favoravelmente a um "lar nacional" para os judeus na Palestina.
Reconheceu-se a ligação histórica do povo judeu com a Palestina e as bases para a constituição de um Estado judeu na região.
Após o Holocausto nazista contra milhões de judeus na Europa durante a Segunda Guerra Mundial, cresceu a pressão internacional para o reconhecimento.
Sem conseguir resolver a polarização entre o nacionalismo árabe e o sionismo, o governo britânico levou a questão à ONU. Em 29 de novembro de 1947, a Assembleia Geral aprovou um plano de partilha da Palestina, que recomendou a criação de um Estado árabe independente e de um Estado judeu, além de um regime especial para Jerusalém.
O plano foi aceito pelos israelenses, mas não pelos árabes, que o viam como uma perda de seu território. Por isso, nunca foi implementado.
Um dia antes do fim do mandato britânico da Palestina, em 14 de maio de 1948, a Agência Judaica para Israel, representante dos judeus durante o mandato, declarou a independência do Estado de Israel. No dia seguinte, Israel solicitou a adesão à ONU e foi aceito um ano depois. Hoje, parte dos membros da organização ainda não reconhece o Estado israelense - o mesmo vale para a Palestina.
3. Por que há dois territórios palestinos?
O relatório apresentado à Assembleia Geral da ONU em 1947 recomendou que o Estado árabe incluísse a área oeste da região da Galileia, a região montanhosa de Samaria e Judeia, com a exclusão da cidade de Jerusalém e a planície costeira de Isdud até a fronteira com o Egito.
Mas a divisão do território foi definida pela linha de armistício de 1949, estabelecida após a primeira guerra árabe-israelense, criando assim dois territórios palestinos: a Cisjordânia (incluindo Jerusalém Oriental) e a Faixa de Gaza. A distância entre eles é de cerca de 45 km. Têm uma área de 5.970 km2 e 365 km2, respectivamente.
Originalmente ocupada por Israel, que ainda mantém o controle de sua fronteira, Gaza foi tomada pelo Exército israelense na guerra de 1967 e desocupada apenas em 2005. O país, no entanto, mantém um bloqueio por ar, mar e terra que restringe a circulação de mercadorias, serviços e pessoas.
Em 2007, Gaza passou a ser governada pelo Hamas, grupo islâmico que nunca reconheceu os acordos assinados entre Israel e outros grupos palestinos. Em outubro daquele ano, um acordo de reconciliação entre o Hamas e o laico Fatah - ambos grupos palestinos, porém rivais - deu à Autoridade Palestina o controle administrativo de Gaza.
4. Israelenses e palestinos nunca se aproximaram da paz?
Após a criação do Estado de Israel e o deslocamento de milhares de pessoas que perderam suas casas, o movimento nacionalista palestino começou a se reagrupar na Cisjordânia e em Gaza, controlados pela Jordânia e pelo Egito, respectivamente, e nos campos de refugiados criados em outros países árabes.
Pouco antes da guerra de 1967, organizações palestinas como o Fatah, então liderado por Yasser Arafat, formaram a Organização para a Libertação da Palestina (OLP) e lançaram operações contra Israel - primeiro a partir da Jordânia e, depois, do Líbano. Os ataques também incluíram alvos israelenses em solo europeu.
Em 1987, teve início o primeiro levante palestino contra a ocupação israelense, a intifada. A violência se arrastou por anos e deixou centenas de mortos. Um dos efeitos da intifada foi a assinatura, entre a OLP e Israel em 1993, dos Acordos de Paz de Oslo, nos quais a organização palestina renunciou à "violência e ao terrorismo" e reconheceu o "direito" de Israel "de existir em paz e segurança", algo que o Hamas nunca aceitou.
Após os acordos assinados em Oslo, foi criada a Autoridade Nacional Palestina (ANP), que representa os palestinos nos fóruns internacionais. O presidente é eleito por voto direto. Ele, por sua vez, escolhe um primeiro-ministro e os membros de seu gabinete. Suas autoridades civis e de segurança controlam áreas urbanas (a chamada "zona A"). Somente representantes civis - e não militares - governam áreas rurais ("zonas B").
Jerusalém Oriental, considerada a capital histórica pelos palestinos, não está incluída nesse acordo e é uma das questões mais polêmicas entre as partes.
Em 2000, a violência voltou a se intensificar na região, quando teve início a segunda intifada palestina. Desde então, israelenses e palestinos vivem num estado de tensão e conflito permanentes.
5. Quais são os principais pontos de conflito?
A demora na criação de um Estado palestino independente, a construção de assentamentos israelenses na Cisjordânia e o bloqueio de Israel a Gaza, condenada pelo Tribunal Internacional de Haia, complicam o andamento de um processo de paz.
Mas esses não são os únicos obstáculos, como ficou claro no fracasso das últimas negociações de paz sérias, em Camp David, nos Estados Unidos, em 2000, quando o então presidente americano Bill Clinton não conseguiu mediar um acordo entre Arafat e o então primeiro-ministro de Israel, Ehud Barak.
As diferenças que parecem irreconciliáveis são:
- Jerusalém: Israel reivindica soberania sobre a cidade inteira e afirma que a cidade é sua capital "eterna e indivisivel", após ocupar Jerusalém Oriental em 1967. A reivindicação não é reconhecida internacionalmente. Os palestinos querem Jerusalém Oriental como sua capital.
- Fronteiras: os palestinos exigem que seu futuro Estado seja delimitado pelas fronteiras anteriores a 4 de junho de 1967, antes do início da Guerra dos Seis Dias, o que incluiria Jerusalém Oriental, algo rejeitado por Israel.
- Assentamentos: ilegais sob a lei internacional, foram construídos pelo governo israelense nos territórios ocupados após a guerra de 1967. Na Cisjordânia e em Jerusalém Oriental, há mais de meio milhão de colonos judeus.
- Refugiados palestinos: os palestinos dizem que os refugiados (10,6 milhões, de acordo com a OLP, dos quais cerca de metade são registrados na ONU) têm o direito de voltar ao que é hoje Israel. Mas, para o governo israelense, permitir seu retorno destruiria sua identidade como um Estado judeu.
6. A Palestina é um país?
A ONU reconheceu a Palestina como um "Estado observador não membro" no final de 2012, deixando de ser apenas uma "entidade" observadora.
A mudança permitiu aos palestinos participar de debates da Assembleia Geral e melhorar as chances de filiação a agências da ONU e outros organismos.
Mas o voto não criou um Estado palestino. Um ano antes, os palestinos tentaram, mas não conseguiram apoio suficiente no Conselho de Segurança.
7. Por que os EUA são o principal parceiro de Israel? Quem apoia os palestinos?
A existência de um importante e poderoso lobby pró-Israel nos Estados Unidos e o fato de a opinião pública ser frequentemente favorável aos israelenses torna praticamente impossível a um presidente americano retirar o apoio a Israel.
De acordo com uma pesquisa encomendada pela BBC em 2013 em 22 países, os Estados Unidos foram a única nação ocidental com opinião favorável a Israel e a única com uma maioria de avaliações positivas (51%). Além disso, ambos os países são aliados militares: Israel é um dos maiores receptores de ajuda americana, em grande parte destinada a subsídios para a compra de armas.
Já os palestinos não têm apoio declarado de nenhuma potência. Na região, o Egito deixou de apoiar o Hamas, cujo apoio principal hoje vem do Catar.
8. O que falta para que haja uma oportunidade de paz duradoura?
Israelenses teriam de aceitar a criação de um Estado soberano para os palestinos, o fim do bloqueio à Faixa de Gaza e o término das restrições à circulação de pessoas e mercadorias nas três áreas que formariam o Estado palestino: Cisjordânia, Jerusalém Oriental e Faixa de Gaza.
Grupos palestinos precisariam renunciar à violência e reconhecer o Estado de Israel. Além disso, teriam de chegar a acordos razoáveis sobre fronteiras, assentamentos e o retorno de refugiados.
No entanto, desde 1948, ano da criação do Estado de Israel, muitas coisas mudaram, especialmente a configuração dos territórios disputados após as guerras entre árabes e israelenses. Para Israel, esses são fatos consumados, mas os palestinos insistem que as fronteiras a serem negociadas devem ser aquelas existentes antes da guerra de 1967.
Além disso, enquanto no campo militar a tensão é constante na Faixa de Gaza, há uma espécie de guerra silenciosa na Cisjordânia, com a construção de assentamentos israelenses, o que reduz, na prática, o território palestino nestas áreas.
Mas talvez a questão mais complicada pelo seu simbolismo seja Jerusalém. Tanto a Autoridade Palestina, que governa a Cisjordânia, quanto o Hamas, em Gaza, reinvindicam a parte oriental como a capital de um futuro Estado palestino, apesar de Israel tê-la ocupado em 1967.
Um pacto definitivo dificilmente será possível sem resolver esse ponto, questão agora ainda mais complexa após a decisão americana de reconhecer a cidade como capital de Israel e transferir sua embaixada para lá.
A decisão de Trump é a concretização de uma medida aprovada em 1995 pelo Congresso americano, prevendo a mudança da embaixada para Jerusalém. No entanto, isso nunca havia sido posto em prática, porque era necessária a aprovação da Presidência.
Desde então, em todos os semestres, o ato do Congresso foi encaminhado aos presidentes americanos, mas a praxe sempre foi renunciar à mudança.
Apesar de parecer contraditório, foi o que o próprio Trump fez inicialmente. O republicano também assinou a renúncia, para que houvesse tempo de iniciar a transferência da embaixada, mas anunciou publicamente o reconhecimento da cidade como capital israelense.
Agora, a transferência da embaixada foi consumada com sua inauguração na segunda-feira, o que intensificou ainda mais a tensão na região na véspera da celebração da Nakba.