A justificativa dada pelos Estados Unidos para os ataques aéreos na Síria em conjunto com o Reino Unido e a França gira em torno da ideia de que é necessário manter a proibição internacional ao uso de armas químicas. O objetivo, dizem, é atingir o arsenal de armas químicas do presidente Bashar al-Assad e impedir novos ataques a civis na Síria.
Marc Weller | BBC News
A primeira ministra do Reino Unido, Theresa May, argumenta que o Reino Unido sempre defendeu regras e acordos mundiais, tanto pelo interesse nacional do país quanto para o bem da comunidade internacional.
Prédio em que, segundo potências ocidentais, haveria produção de armas químicas nos arredores de Damasco; países destacaram compromissos firmados pela Síria em acordos internacionais | EPA |
Legalmente, a Carta das Nações Unidas (documento que criou a ONU em 1945) permite que nações usem a força como autodefesa e, em tese, para a proteção de populações ameaçadas de extermínio por seus próprios governos. O uso de força para propósitos mais amplos pela manutenção da segurança internacional também é permitido. No entanto, esse tipo de ação está sujeita à aprovação do Conselho de Segurança da ONU.
Esse arranjo tenta equilibrar a necessidade de Estados preservarem sua segurança diante de um ataque iminente. O objetivo é garantir que a força não possa ser usada rotineiramente como ferramenta de política internacional. Por isso, desde 1945, as leis internacionais proíbem ataques militares como forma de retaliação ou com o objetivo de "dar uma lição" em outros Estados.
Mas, mesmo que retaliações sejam atos em princípio ilegais, elas podem ser perdoadas se o objetivo for forçar um Estado a cumprir com seus compromissos internacionais.
Em 1981, o Conselho de Segurança da ONU condenou os ataques impetrados por Israel contra o reator nuclear Osirak, no Iraque. Na época, Israel argumentou que o ataque poderia contribuir para impedir a produção de armas de destruição em massa. Anos depois, o conselho criticou o ataque dos EUA a um centro de produção de armas químicas no Sudão, em 1998.
Desta vez, as três potências ocidentais decidiram por realizar bombardeios nos arredores de Damasco como forma de cobrar o compromisso da Síria na Convenção sobre as Armas Químicas. A Síria aderiu em 2013 ao acordo - assinado por 192 Estados e que proíbe a produção, posse e uso de armas químicas.
A Síria também foi submetida a novas obrigações sob a resolução 2118 do Conselho de Segurança, que reforçou a Convenção sobre as Armas Químicas e instrumentalizou a destruição de arsenais destas armas. Em um exemplo impressionante de cooperação internacional, que também envolveu a Rússia, este objetivo foi amplamente conquistado um ano depois, em setembro de 2014.
Veto russo
Porém, desde então, houve 40 registros em que, segundo acusações, armas químicas teriam sido usadas na Síria. A Organização pela Proibição de Armas Químicas (OPCW, na sigla em inglês) trabalha justamente com missões de investigação para apurar se tais armas foram de fato usadas em uma determinada ocasião.
Um mecanismo especial e conjunto entre a OPCW e o Conselho de Segurança definiu meios para responsabilizar os autores destas armas. Mas, depois que esta parceria acusou o governo de Assad no ano passado, a Rússia vetou a sua renovação.
Nesta semana, uma tentativa de reestabelecer um mecanismo como esse falhou, novamente pelo veto da Rússia no Conselho de Segurança. Moscou propôs um outro formato para este tipo de investigação, que foi vetado por Estados ocidentais.
Os três países que acabam de realizar novos ataques à Síria argumentam que não havia perspectiva de obter, no Conselho de Segurança, algum tipo de retaliação ao uso de armas químicas na Síria. Assim, com os bombardeios, estes Estados argumentam terem cumprido sua função pela manutenção da ordem mundial - defendendo a credibilidade geral da proibição e forçando o compromisso da Síria em particular.
Esse argumento, de alguma forma, lembra as justificativas para a invasão do Iraque em 2003 - os americanos defenderam a aplicação das imposições à Bagdá firmadas pelo Conselho de Segurança em relação ao desarmamento.
Com Trump, em abril de 2017, os EUA mobilizaram 59 mísseis contra a base aérea síria de Shayrat. O argumento foi o de que a instalação estava ligada a um ataque químico na cidade de Khan Sheikhun.
O bloqueio de medidas contra a Síria no Conselho de Segurança abre espaço para esse tipo de argumento. A Convenção sobre as Armas Químicas prevê o acionamento do Conselho de Segurança em situações graves como o ataque em Douma. Mas, nos últimos dias, o conselho não conseguiu nem concordar em algum mecanismo para definir as responsabilidades no caso, quanto mais ações mais decisivas para reprimir o uso futuro destas armas.
A postura dos EUA, Reino Unido e França de se colocarem como protagonistas do reforço das leis internacionais não é aceita sem questionamentos por todos. A Rússia já afirmou que os ataques violam em flagrante a probição do uso da força. O Secretariado Geral da ONU também já enfatizou a necessidade de respeitar a primazia do Conselho de Segurança.
Sofrimento de civis
A reivindicação, por parte de um grupo de países, do nome do conselho e da ideia de bem comum reflete a realidade do presente: um pouco como se fosse uma Guerra Fria entre a Rússia e o Ocidente. A ruptura no consenso sobre temas relativos à segurança coletiva necessariamente resulta em atos unilaterais.
Além da necessidade de reforçar os compromissos da Síria em tratados internacionais, May defendeu os bombardeios recentes como uma forma de proteger civis de novos ataques com armas químicas. Na verdade, este é o argumento legal mais forte e persuasivo a favor dos bombardeios.
Em 2013, diante da expectativa de uso de força em retaliação a um ataque químico em Ghouta, o Reino Unido expressamente evocou a doutrina da intervenção humanitária. Segundo esta linha, os Estados podem agir assim em situações em que não há alternativas para proteger populações em perigo e perto da destruição iminente.
A aplicação desta doutrina não é restrita ao uso de armas químicas contra civis; no entanto, considerando os efeitos devastadores destas armas, talvez seja este o tipo de situação em que a doutrina melhor se aplica.
Também pode ser argumentado que os ataques têm a intenção de preservar a segurança nacional dos Estados envolvidos, um apelo ao amplo direito pela autodefesa.
Na teoria, qualquer país pode se defender, antes mesmo de um ataque armado contra seu território. Mas o ataque precisa ser iminente, não deixando escolhas alternativas. A resposta também precisa ser proporcional à ameaça.
Na escalada do conflito que levou à guerra do Iraque em 2003, um discurso do então primeiro-ministro britânico Tony Blair ficou famoso por apontar que o país do Oriente Médio estava em posse de armas de destruição em massa que poderiam ser acionadas em 45 minutos. Sob esse argumento, o Reino Unido clamou por seu direito à autodefesa já que, segundo seus representantes, bases militares britânicas no Chipre estariam ameaçadas.
Mas até hoje não são suficientes as evidências de que Badgá estivesse preparando um ataque do tipo, e o argumento foi deixado de lado. Da mesma forma, não há indícios de que a Síria estivesse se preparando para atacar os Estados Unidos, o Reino Unido ou a França.
Marc Weller é professor de direito internacional na Universidade de Cambridge.