General Santos Cruz disse que não basta vencer confronto armado e cobrou ações sociais
André de Souza | O Globo
BRASÍLIA - O general Carlos Alberto dos Santos Cruz, que chefia a Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp) desde o abril do ano passado e que agora acumula o cargo de secretário-executivo do recém-criado Ministério da Segurança Pública, avaliou que a crise em que se encontra o Rio de Janeiro é fruto de "uma longa história de falta de vergonha na cara". Trata-se do segundo cargo mais importante da pasta, atrás apenas do ministro Raul Jungmann.
General Carlos Alberto dos Santos Cruz em foto de 2013 - Myriam Asmani / Monusco/Divulgação |
Embora não tenha responsabilidade pela intervenção federal do Rio — que está a cargo do Comando Militar do Leste (CML), com sede no Rio —, ele lembrou que não basta vencer o conflito com os bandidos armados. Uma solução para o problema passa também por investimentos, ações sociais e ações de governo. O general fala com a experiência de quem já chefiou missões de paz da Organização das Nações Unidas (ONU) no Haiti e na República Democrática do Congo.
O general não deu opiniões sobre a necessidade de mudanças na lei de drogas. Mas, questionado sobre uma possível legalização da maconha, disse que se trata de um debate necessário. Ele também defendeu o fim do contingenciamento de recursos para a segurança pública. Por outro lado, embora entenda que é preciso mais dinheiro para a segurança, também disse que o orçamento da Senasp está sendo suficiente para tocar os projetos em andamento.
A situação do Haiti, onde o senhor liderou a missão de paz da ONU entre 2007 e 2009, é comparável à do Rio hoje?
Agora não. Naquela época era uma pouco semelhante. Até abril de 2007. A missão começou em 1º de junho de 2004. Por esses três anos, o nível de confronto era bastante alto. Mas, em menos de três anos, foram sufocadas todas as grandes (resistências). Mas era um comportamento um pouco semelhante. Quando a tropa da ONU entrava em certas áreas, o tiroteio era muito intenso.
A atuação das tropas no Haiti é um caminho para o Rio?
Existem algumas semelhanças, mas a diferença é que nós estamos falando, no Haiti, apenas do conflito policial-militar-bandido. Nesse confronto, sem dúvida nenhuma, as Forças Armadas e as forças policiais, com apoio normal, vencem. Mas entre vencer o conflito e resolver o problema há uma distância muito grande no Rio de Janeiro. O crime organizado com arma na mão tem que ser vencido, reprimido. Mas tem outros componentes da segurança pública que não dependem da ação das forças. É o caso de investimentos, ações sociais, ações de governo. Segurança pública é muito mais do que esse componente de conflito.
O senhor também liderou a missão de paz da ONU na República Democrática do Congo. Dá para comparar, dizer se dar um jeito na segurança do Rio é mais difícil?
São situações diferentes. Em termos de complexidade, em termos de dificuldade, de risco, tudo isso é muito semelhante. Os riscos de decisão, não os riscos reais. O risco real no Congo realmente era muito maior. Mas o risco de decisão no Rio de Janeiro também é muito complexo, muito alto.
Na sua avaliação, por que o Rio chegou à situação em que se encontra hoje?
Eu acho que é uma irresponsabilidade histórica deixar a parte urbanística completamente abandonada. Ao longo do tempo, a maneira como se formou a geografia do Rio, a desorganização urbana, com aquele acúmulo imensa de residências nas favelas, aquilo foi irresponsabilidade do Estado. E depois a falta de ações de governo, que não tomou providências que tinham que ser tomadas, às vezes até com tolerância ao crime organizado. E até de próprios setores governamentais, que eram para fazer a fiscalização, mas se envolveram em corrupção extrema. Autoridades que eram para conduzir a sociedade se envolveram em nível de corrupção inimaginável. Um crime organizado no mais alto nível da administração do Estado. Isso daí é uma falta de exemplo total. Você já tem os problemas normais, e ainda tem as pessoas responsáveis pela administração cometendo crimes para roubar dinheiro do Estado. O princípio da autoridade acabou. Tem que restaurar o princípio da autoridade, o princípio do respeito que se perdeu por causa desses maus exemplos.
O mau exemplo é o ex-governador Sérgio Cabral, que está preso?
Não só o ex-governador, como qualquer governante, qualquer elemento de Tribunal de Contas, qualquer elemento de Assembleia, qualquer funcionário público, qualquer pessoa da sociedade civil que tolera a corrupção. Tudo isso foi formando uma podridão, uma deterioração, um apodrecimento social. Então acabou com a administração pública, acabou com o princípio da autoridade. Foi perdida essa referência. Isso tem que ser recuperado. O herói para a pessoa ali na comunidade passa a ser o bandido que tem arma, que ostenta riqueza, carrões, motos. O bandido passa a ser a referência, não o trabalhador. Tudo isso tem que ser recuperado, ser desmanchado. Na realidade, o que levou à crise toda é uma longa história de falta de vergonha na cara. E quem está pagando o preço de tudo isso é a polícia e a população.
O que muda na prática com a criação do Ministério da Segurança Pública em relação às atividades já desenvolvidas no Ministério da Justiça, ao qual inclusive a Senasp era ligada?
Pela Secretaria Nacional de Segurança Pública, as atividades continuam as mesmas. A Força Nacional, que está distribuída em 15 locais diferentes, que tem um grande efetivo no Rio e no Pará (continua igual). As atividades da Senasp, de fiscalização de convênios, de projetos de segurança pública, isso não tem alteração. Na parte de execução, não tem nenhuma alteração significativa.
No Rio, haverá alguma mudança nas ações que já eram desenvolvidas pelo Ministério da Justiça?
O que ela (Senasp) vinha fazendo em coordenação com a Secretaria de Segurança do Rio agora ela vai fazer em coordenação com o interventor (general Walter Souza Braga Netto).
É importante não haver contingenciamento de recursos na segurança pública?
A gente espera que ele seja um dia proibido na segurança pública. Tem que ter o mesmo tratamento da saúde e da educação. É um item crítico. Se não, não adianta. Não tem a escola funcionando, por causa do crime em torno da escola. Não tem a saúde funcionando, porque o médico não chega ao hospital, ou porque o hospital é assaltado ou depredado. A segurança é fundamental e não pode ser contingenciada. Felizmente no ano passado, foi liberado todo o orçamento (da Senasp), e este ano não tem nada contingenciado. Mas é bom ter uma garantia legal de que não possa ser.
Na quarta-feira, o ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann, propôs uma Força Nacional permanente. Em que pé está isso?
A Força Nacional foi criada há aproximadamente 14 anos. Já tem uma experiência considerável, participou de cerca de 260 tarefas diferentes. Acho que está na hora de institucionalizar de uma forma permanente, porque ela é constituída de policiais dos estados e reservistas das Forças Armadas. Mas todos estão numa situação temporária.
Seriam policiais pagos pelo próprio governo federal?
É. Seria uma instituição federal.
Já houve alguma medida efetiva tomada nesse sentido?
Por enquanto estamos com estudos para apresentar sugestões já praticamente concluídos. Mas é um processo um pouco longo, porque tem impacto na administração federal.
Jungmann criticou a classe média que financia o crime consumindo drogas, mas evitou dar opinião sobre a legalização da maconha. Qual a posição do senhor a respeito?
O debate tem que ser feito na área legislativa, na área social. Quem está envolvido na execução não tem nem muito tempo para participar desse debate. É um debate necessário, que já existe, mas precisa ser organizado para chegar a uma conclusão.
No Congresso, há vários projetos de endurecimento penal. Quem é crítico a essa abordagem diz que é mais importante fazer cumprir a lei que já existe. Qual a avaliação do senhor?
Acho que as duas coisas são importantes. A primeira delas é cumprir a lei. Temos deficiência no cumprimento da lei existente, existe um problema na execução da pena. Mas também há necessidade de melhorias, de aperfeiçoamento na legislação também. Não adianta soluções extremas. O melhor é fazer uma combinação de aplicação boa do que existe e aperfeiçoamento daquilo que é deficiente.
Há algum crime que precise ter a pena aumentada?
Às vezes não é aumento de pena, às vezes é mexer na execução penal. Sem dúvida, o crime organizado precisa ser penalizado de maneira mais contundente, de todos os níveis e todas as formas. O crime financeiro, o crime organizado de corrupção, o crime organizado de tráfico de armas, de drogas, tudo isso precisa de uma penalização mais contundente. Isso é bem evidente.
Como seria a penalização mais contundente?
Mexendo na parte de execução penal e também na legislação. Isso aí o legislador está fazendo. Chegou a um ponto tão crítico que agora as atenções estão todas nesses fatores que afetam a segurança pública. Você tem o legislador preocupado, o Judiciário preocupado, Ministério Público preocupado, sociedade preocupada. A segurança foi para a primeira página. Então agora é preocupação geral.
Há propostas de unificação das polícias civil e militar, por meio de propostas de emenda constitucional, que não podem ser aprovadas enquanto durar a intervenção no Rio. O que o senhor acha da unificação?
Você tem instituições seculares. Há um modelo que está aí desde que o Brasil começou. Isso vai exigir uma discussão muito mais profunda, vai passar por interesses corporativas, por mudança de legislação muito grande. Acho que, antes disso, vão ser discutidas outras coisas.
Então não é o melhor momento de tentar fazer a unificação?
Não é que não seja o melhor. É que tem vários assuntos para discutir: Sistema Único de Segurança Pública (Susp), a confecção de TCO (termo circunstanciado de ocorrência, para a PM lavrar esse documento em caso de crimes menores), ciclo completo (para PM, e não só a Polícia Civil, poder investigar). Há várias discussões que estão no mesmo nível. Quem vai discutir isso vai ter que eleger prioridades. O que é o sistema único? É você estabelecer as obrigações do nível federal, estadual e municipal, e encargos financeiros também nos três níveis.