Moradores de comunidades e especialistas recordam problemas de ocupações passadas e temem novas violações. Rio é apenas o décimo Estado mais violento do país
L. Coelho, M. V. Ramos e M. T. Cruz | El País
Apresentada ontem pelo presidente Michel Temer (PMDB) como a solução para os problemas do Rio de Janeiro, o uso das Forças Armadas na segurança pública está longe de ser uma novidade nas comunidades pobres do Rio e, para muitos de seus moradores, viraram sinônimo de mortes e abusos.
Ocupação das forças armadas na Rocinha, em setembro de 2017 | VLADIMIR PLATONOW/AGÊNCIA BRASIL |
Desde 2008, o Exército foi chamado a intervir com poder de polícia em 12 ocasiões, em operações chamadas de GLO (Garantia da Lei e da Ordem). Além de não diminuir a criminalidade, as ações das Forças Armadas deixaram nas comunidades as lembranças de constantes violações de direitos.
“Na Maré tivemos uma série de situações mal resolvidas, com denúncias e críticas muito fortes da população à ocupação “ avalia o teólogo Ronilson Pacheco, ao recordar a ocupação do Exército na favela da Maré entre 2014 e 2015. O objetivo oficial desta era preparar o terreno para a implementação de uma Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) na região, que acabou não saindo do papel. A ocupação aconteceu às vésperas da realização da Copa do Mundo e durou um ano e três meses.
O músico Brunno DJ, morador do Parque União, lembra bem das limitações e opressões que viveu durante a incursão das forças de segurança. “Não se podia fazer nada. Forró, pagode, nada. O esculacho era geral, o tratamento não era diferenciado entre bandido e trabalhador. Todo mundo tava errado pra eles”, conta o DJ.
Em pesquisa divulgada pela Redes da Maré em 2017, cerca de 75% dos moradores consideraram regular, ruim ou péssima a ocupação do Exército no Complexo da Maré entre 2014 e 2015.
Para Irone Santiago, de 52 anos, há ainda um aspecto pessoal para seu desgosto com intervenções semelhantes. A mãe de Vitor Santiago Borges, de 31 anos, viu seu filho ser baleado por militares da Força de Pacificação do Complexo da Maré em fevereiro de 2015. Vitor acabou tendo sua perna esquerda amputada e perdeu uma parte do pulmão. Inicialmente, o Exército nem ao menos aceitou investigar o crime.
Para Irone, essa nova intervenção é um absurdo. “E agora os militares também tem a seu favor mudanças na Lei 13.491”, disse a costureira, referindo-se a lei no Código Penal Militar promulgada ano passado que permite que crimes dolosos de militares contra civis sejam julgados na Justiça Militar. “Eu continuo lutando, mas tem horas que bate o desespero, e aqui na Maré eu percebo cada vez mais gente desacreditada”.
Não é apenas para moradores da Maré que a perspectiva é negativa. Para a graduanda em direito Deize Carvalho, moradora de uma comunidade em Copacabana, essa intervenção pode trazer ainda mais à tona a banalização da vida do pobre e favelado. Outro que teme as consequências da intervenção é Deley, conhecido ativista da favela de Acari. “Meu medo é que persistam as violações aos direitos humanos, que já são recorrentes”.
“Lógica de guerra”
A pesquisadora Lena Azevedo, da ONG Justiça Global, explica que a lógica das Forcas Armadas é de eliminação do inimigo, que é muito diferente da lógica de segurança. “É uma lógica de guerra, de combate ao inimigo externo e isso aplicado na segurança urbana vai causar muitas mortes. Um ano ocupando a Maré e foram mais de 20 mortos e mais uma dezena de sequelados e são crimes que não têm responsabilização. A Justiça militar é muito pouco transparente”, afirma.
“O Rio parece um laboratório de todo mal, de toda perversidade. Tudo que querem experimentar de ruim na política de segurança pública é no Rio. As UPPs [Unidades de Polícia Pacificadora], por exemplo”, critica a pesquisadora.
Lena Azevedo lembra que, quando o Brasil usou pela primeira vez uma operação de Garantia da Lei e da Ordem para colocar o Exército nas ruas, uma boa parte da sociedade ainda criticava a medida. Foi em 1992, também no Rio, no que ficou conhecido como “Operação Verão”, que buscava combater os ainda recorrentes arrastões nas areias das praias, especialmente da zona sul.
“Depois da ditadura, em 1992 foi a primeira vez que teve uma GLO no Rio de Janeiro e ela foi muito rechaçada pela sociedade, porque tínhamos saído de um processo ditatorial, então a sociedade não aceitava de novo ficar sob a lógica militarizada. Hoje as pessoas acham isso normalíssimo, mas não é. Isso é um estado de descaso”, afirma.
O decreto de intervenção federal também foi considerado “bastante preocupante” pela ONG Human Rights Watch. “O Rio de Janeiro precisa aperfeiçoar a atuação da polícia e, para isso, precisa de um especialista em polícia, não um especialista em guerra. A abordagem da segurança pública como um problema militar, baseada em operações militares nas favelas, vem fracassando há décadas, causando uma enorme perda de vida de moradores e policiais e exacerbando os problemas de violência no Rio”, afirmou a entidade, em nota.
Nos últimos sete anos, entre 2010 e 2017, foram 29 usos da GLO em todo o país, muitos em virtude dos Jogos Olímpicos e da Copa do Mundo. A controversa prisão de 18 jovens no Centro Cultural São Paulo, com a presença de um capitão atuando como infiltrado em movimentos de oposição ao governo e assediando jovens, aconteceu durante uma GLO preparada para a passagem da tocha olímpica na Avenida Paulista.
Intervenção inédita
O decreto assinado ontem pelo presidente Michel Temer, contudo, difere das outras 12 de vezes em que o Exército foi chamado a intervir no Estado.
As operações anteriores eram amparadas pela GLO, que é prevista no artigo 142 da Constituição Federal e pela Lei Complementar 97, de 1999, e pelo Decreto 3897, de 2001, que davam às Forças Armadas poder de polícia para apoiar operações pontuais de combate ao tráfico de drogas e roubos de carga, por exemplo. O decreto de intervenção federal assinado nesta sexta-feira (16/2), ao contrário, evoca os artigos 144 e 145, que tratam da gestão da segurança pública – o que inclui traçar estratégias e destinar recursos – de um Estado da Federação.
Em evento no último dia 31 de janeiro, o ministro da Defesa, Raul Jungmann, ressaltou, no entanto, que o que deveria ser uma medida extrema em casos extraordinários acabou virando rotina. “Estou há dezoito meses à frente do Ministério da Defesa, e já estamos indo para a nossa 11ª Garantia da Lei e da Ordem”, lamentou o ministro.
As 12 ações de GLO no Rio foram as seguintes: em outubro de 2008 (eleições municipais), de dezembro de 2010 a junho de 2012 (Ocupação do Complexo do Alemão), julho de 2011 (V Jogos Mundias Militares), junho de 2012 (Rio + 20), outubro de 2012 (eleições municipais), julho de 2013 (Jornada Mundial da Juventude), julho de 2014 (Copa do Mundo), de abril de 2014 até junho de 2015 (Ocupação do Complexo da Maré), agosto de 2016 (Jogos Olímpicos), outubro de 2016 (eleições municipais), fevereiro de 2017 (votação do pacote de austeridade), e a partir de julho passado, a implantação do Plano Nacional de Segurança no Rio.
A partir de julho, as operações do tipo Garantia de Lei e Ordem deram apoio em operações conjuntas e pontuais com as polícias Civil e Militar para combater o tráfico de drogas e os roubos de carga. Desde então, houve incursões nas favelas da Rocinha, Cidade de Deus, Jacarezinho, Mangueira, Tuiuti, Arará, Mandela 1 e 2, Barreira do Vasco, Complexo do Salgueiro, Anaia, São Carlos, Zinco, Querosene e Mineira. Como parte da GLO do Plano Nacional de Segurança, o Exército também foi usado na disputa de facções da Rocinha.
Embora a intervenção anunciada pelo presidente seja inédita, o ativista Ronilso Pacheco teme que as consequências sejam as mesmas das GLO feitas desde 1992. Para ele, a mídia tem bastante influência nesse processo que levou a decisão da intervenção, uma vez que o Rio é apenas o décimo Estado mais violento do país, segundo o 11º Anuário de Segurança Pública.
“Essa intervenção atende a uma histeria e provê uma resposta rápida”, avalia, pontuando porém, que as perspectivas não são boas. “Para os corpos pobres, que serão os corpos efetivamente controlados, para essa comunidade, essa mudança é muito pouco significativa. É até negativa.”