Um dos principais grupos da oposição síria está ideologicamente fragmentado. Hoje, parte dos combatentes que antes lutava contra Assad e pela democracia apoia a Turquia em ofensiva contra conterrâneos curdos.
Kersten Knipp | Deutsch Welle
Em janeiro, uma delegação do Exército Livre da Síria (ELS) viajou a Washington para pressionar a CIA a retomar a ajuda ao grupo, a qual havia sido congelada pelo presidente Donald Trump. Caso o apoio não fosse retomado, a influência iraniana na Síria continuaria a crescer, alertou Mustafa Sejari, um dos comandantes do ELS, pois o grupo não teria força suficiente para conter essa situação.
Combatentes do ELS a caminho de Afrin |
"O tempo urge", disse Sejari à agência de notícias Reuters. "É hora de transformar palavras em ação. As milícias iranianas estão se espalhando pela Síria sem qualquer resistência séria." O comandante disse ainda ter alertado para os riscos políticos do curso seguido por Trump. "Explicamos o quão perigoso seria parar de apoiar as forças moderadas do ELS."
Menos de uma semana depois, ficou claro o que Sejari queria dizer. Por volta de 35 mil combatentes do ELS se aliaram aos turcos na luta contra o enclave curdo de Afrin. O exército, fundado em julho de 2011 como uma fusão de opositores seculares do presidente sírio, Bashar al-Assad, luta agora contra os curdos sírios – contra cidadãos de um país cujo caráter democrático e republicano um dia foi defendido pelo ELS.
Divisão ideológica
A história por trás da decisão de lutar contra os cidadãos do próprio Estado é longa. Ela é o resultado de alianças mutáveis e de difícil compreensão que caracterizam o campo dos adversários de Assad já desde um estágio muito inicial do levante. Nos últimos anos, o Exército Livre da Síria passou por uma odisseia política e, acima de tudo, militar, ao final da qual o seu caráter inicial se transformou no oposto.
"O Exército Livre da Síria é praticamente inexistente", disse Kamal Sido, especialista em Oriente Médio na Sociedade para os Povos Ameaçados, à emissora Deutschlandfunk. "O Exército Livre da Síria é um rótulo, sob o qual se esconde uma série de nomes diferentes. Quando se observam esses nomes, quando se assistem aos vídeos desses grupos, quando eles são vistos marchando – trata-se de grupos islâmicos, de grupos radicais islâmicos jihadistas."
Na verdade, grande parte das facções que se escondem sob o rótulo de ELS persegue um programa islâmico às vezes parcialmente moderado, às vezes radical. Ao mesmo tempo, outros grupos continuam a perseguir objetivos seculares.
Charles Lister, analista especializado em Oriente Médio do think tank americano Brookings Institution, listou quase 80 unidades e associações diferentes que se aliaram sob o nome ELS, ou melhor: que agem sob ele. Politicamente, esses grupos abraçam objetivos muito diferentes. O nome ELS sugere uma unidade que não existe há muito tempo.
À desintegração político-ideológica seguiu-se a militar. Para os EUA, que sempre se posicionaram do lado dos adversários moderados de Assad na guerra da Síria, o ELS nunca pareceu ser um parceiro completamente confiável. Washington sempre temeu que o apoio dado ao ELS pudesse acabar em mãos de combatentes jihadistas, como os do "Estado Islâmico". Assim, o governo do ex-presidente Barack Obama manteve-se reticente quanto ao apoio e ao fornecimento de armamentos, assim como o governo Trump.
Linhas turvas
O resultado: o ELS acabou procurando outros aliados – e se aproximou muitas vezes de grupos jihadistas mais bem equipados. A pressão militar exercida pelo regime Assad não lhes deu opção, até por razões de autodefesa.
Ironicamente, a preocupação dos EUA em apoiar os parceiros errados tornou-se uma realidade trágica: foi justamente a falta de ajuda que impulsionou o surgimento de uma tropa que não se queria apoiar de forma alguma. Parte desses grupos radicais marcha agora ao lado da Turquia contra os curdos.
No entanto, esses grupos formam apenas uma parcela das unidades do ELS que lutam do lado turco. O jornalista Faisal al-Yafai apontou no jornal The National, de Abu Dhabi, para as consequências da fragmentação ideológica e militar do ELS. "As linhas demarcatórias da guerra na Síria, que antes eram claras, agora estão turvas. Acabaram-se os dias em que os apoiadores do regime Assad lutavam de um lado, e o ELS, do outro", afirmou.
Guerra em nome da república
As consequências do colapso das linhas de frente também são evidentes na atual investida contra Afrin. Do lado turco, não somente os jihadistas estão marchando sob o rótulo do ELS, mas também grupos seculares. Para esses, escreveu Yafai, trata-se de preservar a unidade territorial da Síria, apesar da oposição ao regime de Assad. Eles veem essa unidade ameaçada pelos curdos em Afrin – com o resultado de que, agora, eles pedem ajuda justamente ao regime Assad.
A preocupação dos combatentes do ELS é que a região no extremo noroeste da Síria possa um dia já não ser mais território sírio, mas curdo – parte de um Estado curdo possivelmente independente. Esse objetivo foi negado pelos representantes do curdo-sírio Partido da União Democrática (PYD) na região em torno de Afrin. No entanto, a Turquia e os militantes do ELS marchando do seu lado não acreditam nisso.
Mas o ELS não pode escapar de uma contradição: as pessoas que ataca em nome da unidade territorial da Síria são sírias: curdos sírios. Elas fazem parte da república que o ELS diz defender. A ideologia política e a prática militar se contradizem. Parece que o levante na Síria não tem mais um objetivo. Assad, apoiado pela Rússia e pelo Irã, permanece no poder, e está cada vez menos claro contra o que os antigos rebeldes ainda estão lutando.