Manifestações em várias cidades do país tomaram rumo inesperado. Possivelmente instigados por clérigos muçulmanos, protestos acabaram se voltando contra o establishment religioso do país.
Kersten Knipp | Deutsch Welle
Em meio à atual onda de protestos no Irã, o vice-presidente do país, Eshaq Jahangiri, pediu cautela. Segundo Jahangiri, quem incita a protestos corre o risco de perder o controle sobre as manifestações – uma máxima que, para ele, também vale para os protestos atuais. Iniciadas na semana passada, as manifestações tiveram num primeiro momento a inflação e o desemprego como alvo, mas logo ganharam tom político, com críticas ao presidente Hassan Rohani e ao líder supremo, Ali Khamenei.
Protesto em Teerã, em 30 de dezembro |
"Aqueles que estão por trás desses acontecimentos vão queimar os próprios dedos", disse o vice-presidente. "Eles acham que estão atingindo o governo com suas ações." Jahangiri sugeriu que, na verdade, os organizadores das manifestações estariam prejudicando, em primeira linha, a si próprios.
Muitos observadores apontaram que os protestos não tiveram início num local qualquer, mas na cidade de Mashhad, no nordeste do país, próxima à fronteira com o Turcomenistão. A metrópole de três milhões de habitantes é um dos sete locais sagrados para os muçulmanos xiitas e é a cidade natal do clérigo conservador Ebrahim Raisi. Derrotado por Rohani nas eleições presidenciais em maio do ano passado, ele foi o principal rival do atual chefe de Estado iraniano no pleito.
O sogro de Raisi, o clérigo radical Ahmad Alamolhoda, também vive em Mashhad. Recentemente, Alamolhoda protestou contra a decisão de concertos musicais voltarem a ser permitidos no país.
Os protestos atuais começaram um dia depois de o chefe da polícia da capital Teerã anunciar que mulheres que contrariem as regras de uso do véu não serão mais presas, mas que, em vez disso, deverão frequentar aulas educativas.
"Clérigos se comportam como deuses"
O alerta de Jahangiri parece sugerir que o círculo em torno de Raisi e Alamolhoda exortou o povo a sair às ruas para protestar. Agora, no entanto, as manifestações claramente saíram de seu controle. No início, os protestos eram claramente conservadores, com menções também a problemas sociais, como críticas ao aumento do custo de vida no país.
Depois, porém, o tom mudou. Os protestos se tornaram cada vez mais direcionados contra o establishmentreligioso do país – tanto contra os privilégios materiais dos líderes religiosos quanto contra o curso social e político que estes estão impondo ao Irã.
Segundo um relatório da rede britânica BBC, os manifestantes entoaram coros como "O povo está mendigando; os clérigos agem como deuses". Outros meios de informação relataram que, na cidade de Abhar, no noroeste do país, a população queimou fotos do aiatolá Ali Khamenei.
O povo também está se voltando contra a política externa que os líderes revolucionários estão impondo no país – especialmente contra as ambições hegemônicas que o governo do Irã vem demonstrando ter, principalmente desde o início da guerra da Síria, em 2011.
Ainda de acordo com a emissora britânica BBC, os manifestantes gritaram "nem Gaza, nem Líbano – minha vida pelo Irã". A mensagem é que a energia gasta pelos clérigos muçulmanos na política externa deveria ser direcionada para resolver os problemas internos do país.
Crítica a carências sociais
A população iraniana está preocupada com a alta taxa de inflação que assola o país desde o início dos anos 1970. Nos últimos anos do reino do xá Mohammed Reza Pahlavi, a inflação superava os 15%, enquanto que, nos anos 1990, sob o presidente Akbar Hashemi Rafsanjani, a taxa subiu para mais de 25%.
Nos anos seguintes, a inflação caiu, com algumas altas ocasionais, para pouco menos de 18%. O governo atual, de Rohani, nivelou a inflação para pouco abaixo de 9% – o patamar mais baixo em mais de 40 anos.
No entanto, muitos iranianos ainda estão insatisfeitos, também porque o próximo orçamento prevê cortes em programas de ajuda social. A população mais pobre será a mais afetada, e grande parte dela terá poucas chances de melhorar sua situação social num futuro breve – o Fundo Monetário Internacional (FMI) prevê uma taxa de desemprego de cerca de 12% nos próximos anos.
"Morte aos talibãs"
Soma-se a isso o fato de que os iranianos direcionam suas esperanças para as consequências positivas do acordo nuclear fechado, em 2015, entre o Irã e os países com poder de veto no Conselho de Segurança das Nações Unidas mais a Alemanha. Porém, a eliminação das sanções contra o Irã ainda não levou às tão esperadas melhoras na vida financeira da população.
Os manifestantes também estão culpando os líderes religiosos por isso – eles teriam gritado "morte aos talibãs", sugerindo que, em seus olhos, não há grande diferença entre clérigos xiitas iranianos e os extremistas sunitas no vizinho Afeganistão.
Se os protestos foram realmente incitados por clérigos muçulmanos conservadores, houve, como deu a entender o vice-presidente Jahangiri, um erro maciço de cálculo. O tiro teria saído pela culatra, com a insurgência se voltando claramente contra eles e contra a ordem política e social que criaram. Um manifestante disse à BBC que não estaria protestando contra Rohani, mas contra o sistema "podre".
O "punho de ferro da nação"
O governo iraniano iniciou uma resposta maciça contra os manifestantes, que deverão, segundo o alerta de um general, sentir "a mão de ferro da nação".
Até agora, ao menos 21 pessoas morreram nos protestos. Não se sabe quem são os responsáveis pelas mortes. O que parece certo é que as autoridades de segurança decidiram por um curso linha dura. De acordo com informações da agência de notícias ILNA, 200 manifestantes foram presos no fim de semana.
No entanto, está claro que muitos iranianos não se deixarão intimidar pela repressão do governo. Em vídeos divulgados nas redes sociais, milhares de pessoas são vistas protestando na capital, Teerã, e também em cidades como Isfahan e Chorramabad.
Possivelmente, as manifestações são apenas o início de uma série de protestos. Titular do Prêmio Nobel da Paz, a iraniana exilada Shirin Ebadi acredita que esses protestos se tornarão ainda maiores que as manifestações pós-eleitorais de 2009.