Sobreviventes dos sete anos de guerra pouco a pouco retornam aos seus lares, enquanto o Governo trabalha para restaurar a infraestrutura nas grandes cidades
Natalia Sancha | El País
Encarar as ruínas do bairro de Al Sukkari, o mais devastado de Aleppo (Síria), deixa qualquer um de coração apertado. Os que outrora eram edifícios transbordantes de vida se transformaram em esqueletos de arame, salpicados por pedaços de cimento pendurado. Aleppo completa um ano desde que o Exército regular sírio expulsou 2.000 insurgentes e jihadistas entrincheirados em um punhado de bairros. Em meio a uma gigantesca montanha de escombros, surpreendentemente a vida aparece. Um colorido varal que se destaca sobre o parapeito de uma sacada mostra que uma família de refugiados voltou para lá.
Um grupo de pessoas caminha por uma rua de Homs | NATALIA SANCHA - EL PAÍS |
“Vivemos cinco anos acolhidos num colégio. Mas neste mês nos disseram que tínhamos que ir embora.” Quem fala é Nahla Khataba, de 38 anos e mãe de sete filhos. Sua família é uma das duas que já regressaram a este edifício onde, antes da guerra, havia 15 lares. “Não sabemos nada dos nossos vizinhos. Alguns foram para a Turquia, outros para Damasco”, relata. Aleppo, a cidade mais povoada da Síria, com quase cinco milhões de habitantes em 2010, viu uma quinta parte de seus moradores fugirem. Agora, 332.000 já voltaram para o que resta de suas casas.
Khataba pediu um empréstimo equivalente a 6.000 reais – uns dois anos de salário no país – para poder reformar seu antigo lar. Os tijolos esbranquiçados contrastam com os buracos nas paredes dos apartamentos vizinhos, que expõem impudicamente salas e banheiros, qual numa casa de bonecas. A vista da sua sacada dá para o antigo colégio dos seus filhos, hoje reduzido à horizontal, como mais de 40% das escolas do país.
Neste sétimo ano de luta, as tropas regulares sírias recuperaram cerca de 70% do território, onde vivem 78% dos sírios. Controlam as maiores aglomerações urbanas – Damasco, Homs e Aleppo, mas não Raqa. O balanço humano da guerra é devastador, com entre 320.000 e 470.000 mortos (conforme a fonte usada), sendo um terço deles civis. O custo econômico chega a 760 bilhões de reais, com 27% dos lares sírios destroçados pelos combates, de acordo com cálculos do Banco Mundial. Acompanhado por um funcionário do Governo, o EL PAÍS percorreu as três principais cidades sírias: Damasco, Aleppo e Homs.
As obras de reconstrução são visíveis nas estradas que conectam as cidades, nos espaços públicos e nas zonas catalogadas como patrimônio cultural. Mas 10% dos seis milhões de refugiados internos que neste ano decidiram retornar aos seus lares – metade deles para Aleppo – precisam arcar com a reforma das suas moradias. Outros cinco milhões de refugiados continuam dispersos pelos países vizinhos e pela Europa. Hoje, permanecem na Síria 18 milhões de habitantes dos 23 milhões que havia no início da guerra.
Primeira tarefa: retirar minas
“A primeira coisa foi limpar os bairros de explosivos e minas. Depois, limpar as ruas de escombros, e agora começaremos a reabilitar os serviços básicos”, conta Lama Keyali, do departamento de imprensa da Governadoria de Aleppo. Na prática, as palavras de Keyali se traduzem em seis anos de contínuo trabalho para limpar as 14,9 milhões de toneladas de entulho que a guerra deixou naquela que já foi a maior cidade e polo econômico da Síria. E isso com as arcas estatais secas, tanto pelo esforço bélico como pelas sucessivas quedas nas duas principais fontes nacionais de arrecadação fiscal: a produção de petróleo diminuiu 93%, e a agrícola, 40%.
Na prefeitura de Aleppo, os funcionários municipais elaboraram um plano de reconstrução que nenhum dos seus arquitetos consegue traduzir em cifras. No terreno, o grau de destruição varia de rua para rua, de bairro para bairro, sendo Aleppo a segunda província mais afetada pelo conflito (de um total de 14 no país), atrás apenas de Raqa.
A solidariedade dos concidadãos
Vários quarteirões adiante da casa de Al Sukkari, um homem entra no que parece ser um edifício à beira do desmoronamento. Munido de uma lanterna, supera com agilidade a fileira de degraus que parecem se sustentar sobre o vazio, até alcançar o terceiro andar. Ahmad Halar, de 58 anos e ex-porteiro, relata por que, em 15 de junho de 2014, precisou abandonar sua casa no bairro curdo de Sheikh Masoud: “Porque as tropas curdas exigiam um dos meus filhos em suas fileiras para eu poder ficar”.
“Tenho sete filhos. Bom, seis, porque um morreu combatendo em Al Bab”, conta, na sala do seu novo lar. Outros três de seus filhos homens combatem pelo Exército sírio. O mais novo, Ahmed, está de baixa, enrolado em cobertores sobre um colchão, prostrado em frente ao televisor após ser ferido numa perna. Sobrevivem com os 250 reais que conseguem juntar entre a pensão por viuvez da sua nora e o salário que o patriarca ganha carregando latas de óleo numa fábrica. Não podem custear os 190 reais de aluguel que lhes pedem por um apartamento sem mobiliar, então decidiram ocupar este edifício em ruínas. Halar foi salvo pela solidariedade de seus concidadãos. Como o dono do edifício, que não cobra aluguel de um desconhecido que um dia apareceu com uma porta para fechar a entrada da sua moradia.
É nos espaços públicos onde se percebe a maior agitação de operários e caminhões de cimento. O velho bazar de Aleppo, de mais de 3.000 anos, foi 70% destruído pelos combates. Nesta semana, vários comerciantes reabriram suas lojas, e a galeria está transbordando de clientes. É o caso de Abderrahman Shisman, de 41 anos, da terceira geração de produtores do famoso sabão de Aleppo. “Com as fábricas destruídas em Aleppo, agora produzimos em Afrín [localidade curda ao norte]”, diz. Sem aviões nem morteiros sobrevoando suas cabeças, os moradores de Aleppo se aproximam em massa para visitar o centro antigo, saltando as crateras no chão. Os guindastes balançam sobre a mesquita omíada, e entre os becos se avistam bancas improvisadas.
A rodovia entre Damasco e Aleppo cheira a asfalto recém-espalhado, e os escombros que torpedeavam o caminho 10 meses atrás desapareceram. Os povoados de trânsito, como Esfira, recuperam seus intermináveis congestionamentos com ônibus, caminhões cheios de mercadorias, tanques russos e caminhonetes carregadas de famílias espremidas entre seus bens.
Em Homs ergue-se de novo o indescritível cenário resultante da destruição humana. O bairro de Khaldie é o mais afetado. Lá, fileiras de edifícios derrubados vão até onde a vista alcança. Um punhado de afáveis soldados saúda os motoristas de ônibus e taxistas que, de vez em quando, impregnam de movimento a estática imagem deste pós-guerra. Várias linhas de ônibus foram restabelecidas para atender às 25 famílias que voltaram a viver nesta ratoeira.
Retorno ao que resta do lar
Do nada, surgem três mulheres escoltadas por um adolescente. É a primeira vez em seis anos que a família Badou se aventura a ver que fim levou o seu lar. Com a imunidade psicológica conferida por longos anos de exposição à guerra e aos seus traumas, o trágico momento não é de pranto e lamento, como cabia esperar. As mulheres levam as mãos à boca ou à cabeça, e avançam apenas poucos metros, para evitar que afundem no chão instável. “Olhe onde foram parar as cortinas”, diz a matriarca, enquanto recolhe um isqueiro imprestável do chão. “Buff, não sobrou nada”, suspira sua irmã, incapaz de assimilar o que tem à sua frente. Cabisbaixas, empreendem o caminho de volta ao apartamento alugado que, agora sabem, ainda terão que pagar por vários anos.
Os muros que antigamente separavam os edifícios foram perfurados para permitir a passagem dos combatentes, que assim se protegiam da mira dos franco-atiradores. A pintura de um casario campestre resistiu sobre a parede do que parece ter sido uma sala de estar. A seus pés se pulverizam roupas e utensílios, testemunhas mudas de uma vida passada. No pátio interno, um jasmim de dois metros cresce orgulhoso entre restos de lixo, alheio tanto à guerra como ao pós-guerra.
O parque-cemitério e o casamento
No meio do dia, começa o trovejar das rajadas de Kalashnikov no cemitério de Ferdus, no centro de Homs. Na verdade, este terreno foi projetado como parque, mas a guerra o condenou a virar o cemitério dos mártires. Centenas de tumbas semeiam a terra. A maioria de soldados na faixa dos 20 anos, como Shadi, que está sendo enterrado por sua família entre os inconsoláveis soluços da sua esposa e o murmúrio das rezas. Morreu na frente de Hama, e seu sepultamento recorda que, enquanto três quartos do país tentam reconstruir sua vida, outro quarto continua imerso nas frentes de batalha. Todas as tumbas são datadas de 2012 em adiante. Os mais jovens tombaram na miríade de atentados terroristas que sacudiram a cidade.
Os combatentes (insurgentes, jihadistas ou soldados) somam 60% das vítimas da guerra. Embora o Governo de Damasco comemore a iminente vitória, existem focos de guerra em várias regiões, como Idlib, Deir Ez-Zor, a periferia de Damasco e Hama. No resto, os sírios se esforçam em começar de novo.
“Aqui em Homs, 15 dos 30 bairros foram afetados ou destruídos pela guerra”, diz, na Prefeitura, a arquiteta Reem Baalbaki, do grupo de especialistas encarregados da reconstrução. Na Governadoria, os funcionários ainda não conseguem avaliar seu custo. Entre montes de concreto e vergalhões de aço, avista-se a luz de um farol. A poucos metros caminha uma família de mãos dadas. Neste bairro, vários comerciantes reabriram suas portas um ano atrás. Foram os primeiros a solicitar à prefeitura o restabelecimento das redes elétrica e de abastecimento hídrico. Há seis meses, a família Kabani trabalha na reconstrução da sua moradia. Os combates ditaram a sorte e o tempo que os refugiados demorarão a retornar para suas casas. A cada manhã, esta família caminha vários quarteirões até chegar à avenida Hamidie, onde a vida ressurge em meio ao tráfego agitado e o bulício dos comércios.
Ao anoitecer pipocam de novo os tiros no ar. Desta vez para festejar um matrimônio. Sara, de 22 anos, e Mohamed, de 30, estão se casando. O soldado tirou quatro dias de licença da frente de Abu Kamal, no sudeste, que havia sido o último reduto do Estado Islâmico na Síria. No salão de beleza de Alestora, o vaivém é exaustivo. As noivas pululam nervosas em busca dos seus cílios postiços perdidos, de um retoque nas unhas, ou um pouco mais de laquê no penteado.
Assim como em Aleppo, a reconstrução do bazar de Homs avança num bom ritmo. “Desde 2014, reabilitamos 165 dos 380 comércios”, conta Bahaa Khuzan, responsável pelo projeto de restauração financiado pelo PNUD (o Programa da ONU para o Desenvolvimento).
24 horas de luz, finalmente
De volta a Damasco, coração do país com 4,5 milhões de habitantes nos tempos do pré-guerra. “Faz mais de um mês que temos quase 24 horas de eletricidade!”, conta Elias, eufórico, no bairro cristão de Bab Tuma. A cidade de Damasco sobreviveu quase intacta, exceto pelas cicatrizes invisíveis que seus habitantes arrastam consigo, incluindo agora um milhão de refugiados internos. Nos últimos 10 dias, 76 morteiros lançados a partir de zonas insurgentes mataram 33 pessoas e feriram 154. Dezenas de civis também morreram nessa periferia damascena insurreta sob as bombas dos aviões russos e sírios que sobrevoam a capital constantemente.
Conforme a vida parece retornar às principais cidades e os refugiados regressam a conta-gotas a seus lares, nos escassos bolsões insurgentes a guerra, os bombardeios e a escassez de alimentos prosseguem. A periferia de Damasco está inacessível à imprensa, devido aos combates. Em bairros como Jobar, Meliha, Daraya e Yarmouk, que o EL PAÍS cobriu nos últimos anos, restam apenas 25% da população. Ninguém se aventurou até lá para avaliar os danos da guerra.