Há vários dias, o destróier USS James Williams (DDG-95) da Marinha estadunidense entrou no mar Negro se dirigindo ao porto ucraniano de Odessa, o que gerou uma onda de repercussão na mídia. A Sputnik explica o que provoca preocupação por parte das autoridades russas e como os EUA tentam "enganar" os acordos internacionais.
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A questão da liberdade de navegação sempre foi uma das mais urgentes na política internacional, pois é precisamente ela que concede aos países a possibilidade de comerciar, garantir sua presença militar em várias regiões ou até deslocar forças com o fim de travar uma campanha militar. Porém, é claro que nem tudo é assim tão simples: existe uma plataforma inteira que se chama Direito Marítimo Internacional que, logicamente, rege os fundamentos e as regras de navegação aplicadas por todo o oceano internacional e em algumas áreas especificas.
Destróier USS Porter da US Navy entra no Mar Negro pelo estreito de Bósforo, Turquia © REUTERS/ MURAD SEZER |
Em sentido mais largo, trata-se da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, celebrada em 1982, que estabelece tais conceitos como mar territorial (12 milhas náuticas), zona econômica exclusiva (200 milhas) e plataforma continental, pertencentes a cada país. Este acordo, de fato, é superior a todos os outros, porém, existem também tais áreas como alto-mar (onde não há jurisdição de nenhum Estado, ou seja, trata-se de águas internacionais) e regiões com condições determinadas por certos tratados. O mar Negro, nomeadamente os estreitos de Bósforo e Dardanelos, é precisamente uma de tais regiões.
Domínio turco nos estreitos
O regime de navegação nos respectivos estreitos do mar Negro, porém, é regulado por um documento separado — isto é, a Convenção de Montreux, celebrada ainda em 1936, concedendo às autoridades turcas o controle total sobre estas vias marítimas, mas deixando-as abertas para passagem dos navios de outros países, com certas condições.
Assim, às potências que têm saída para o mar Negro (atualmente são a Turquia, a Romênia, a Bulgária, a Rússia, a Ucrânia e a Geórgia) é permitido fazer passar qualquer tipo de navios através dos estreitos. Já os outros países podem efetuar navegação civil, enquanto a passagem de navios militares fica já muito mais complicada e se resolve, na maioria dos casos, através de negociação prévia.
Ademais, mesmo após conseguir consentimento das autoridades turcas, os navios estrangeiros enfrentam outras restrições — seu deslocamento não pode superar 30 mil toneladas, enquanto a presença na respectiva área não pode durar mais de 3 semanas.
Entretanto, o acordo oferece à Turquia a possibilidade de mudar a ordem de regulamento em alguns casos particulares e, além disso, contém muitas formulações bem nebulosas, o que contribui frequentemente para o aumento de tensão entre vários países nesta região sensível. Não é de estranhar que a maior confrontação, neste sentido, ocorre entre os países da OTAN, sobretudo os EUA, e Moscou.
Direitos especiais para a Marinha dos EUA?
Pronto, de fato, os navios estadunidenses, realmente, têm todo o direito de atravessar os respectivos estreitos desde que observem todas as condições. Mas o problema é que Washington nem sempre o faz, e, sobretudo, nem sequer participa da Convenção de Montreux.
Como em vários outros casos, optou por não atar suas mãos com quaisquer obrigações internacionais, declarando, porém, que as respeita e segue observando.
Vamos analisar: durante a época soviética, especialmente durante a Guerra Fria, a Marinha dos EUA na verdade não se atrevia a questionar o respectivo acordo e mal aparecia na área. Contudo, o colapso da URSS mudou tudo, e já entre 2000 e 2015 o mar Negro evidenciou a passagem de 325 navios da Aliança Atlântica, sem tomar em conta a base militar do bloco na Romênia, o ponto de baseamento na Geórgia e as manobras anuais Sea Breeze.
E se antes da crise política nas relações russo-ocidentais tudo isso era motivado pela necessidade de combater a pirataria e terrorismo internacional, hoje em dia os altos responsáveis militares estadunidenses nem têm medo de dizer em voz alta que estão lutando contra a maldita "ameaça russa".
De fato, através dos países-membros da OTAN, especialmente aqueles que ficam na costa do mar Negro, o Pentágono está assegurando uma presença militar nestas águas ao longo de todo o ano. E nem planeja diminuí-la: muito pelo contrário.
Assim, por exemplo, no ano passado o vice-almirante James G. Foggo, comandante da 6ª Frota da Marinha dos EUA baseada no Mediterrâneo, propôs aumentar a presença de um navio da OTAN no mar Negro para até 4 meses, caso seja adequado perante os riscos crescentes (relacionados com a Rússia, claro).
Tudo isso parece corresponder pouco aos tratados internacionais, dado que em um dos seus discursos o comandante também chamou o mar Negro (colocando-o no mesmo leque que o Báltico e o Mediterrâneo) de "águas internacionais que a ninguém pertencem". Mas será que os acordos dos quais os EUA não fazem parte não têm vigor mesmo?
Mar Negro como palco de tensão
Então, estritamente falando, os EUA não violam a Convenção de Montreux com seus atos no mar Negro — a coisa é que eles encontram caminhos para contorná-la. As violações reais, relacionadas com a própria Marinha americana, ocorreram apenas algumas vezes — em 2008, durante o conflito armado na Ossétia no Sul, e em 2014, quando a fragata USS Taylor permaneceu na área por 12 dias a mais devido a "uma avaria".
Mas tudo isso não alivia a situação, dado o contexto já mencionado das atividades da OTAN. Ademais, seria estranho esperar lealdade das autoridades russas, quando um destróier da classe Arleigh Burke, equipado com dois sistemas de lançamento de mísseis Aegis, capaz de transportar até 56 mísseis Tomahawk (que podem ser equipados com ogivas nucleares), bem como um helicóptero SH-60 Seahawk, e uma tripulação composta por 337 efetivos, permanece perto da costa russa.
Por enquanto, a situação se limita apenas a avisos e declarações recíprocas. Assim, após a entrada do destróier USS James E. Williams no mar Negro, o representante oficial da Rússia junto à OTAN, Aleksandr Glushko, afirmou que "hoje em dia a OTAN tenta deslocar os cenários de confrontação para as águas do mar Negro".
Em opinião do diplomata, porém, o bloco "tem toda a consciência de que o mar Negro nunca se tornará um 'lago da OTAN' e nós empreenderemos todos os esforços para neutralizar as possíveis ameaças e tentativas de pressionar a Rússia a partir do flanco sul".
Vale ressaltar também que a Turquia está se distanciando cada vez mais da OTAN hoje em dia, o que também pode influenciar a sua política de controle dos estreitos no futuro.
Aliás, a Rússia já provou que não permitirá tal tipo de provocações e tem toda a capacidade para lidar com elas — basta relembrar a recente entrada da fragata "invisível" de mísseis da Marinha da França, da classe La Fayette, no mar Negro. Entretanto, apesar da sua tecnologia furtiva, foi logo detectada pelos serviços de radar russos.