Intervenção da Rússia, aliada da Síria, ajudou a mudar o rumo da guerra, dizem especialistas. Veja em que pé está o conflito.
Por Marina Franco | G1
A guerra na Síria completa seis anos nesta quarta-feira (15) com um saldo de cerca de 400 mil mortos, 4,9 milhões de refugiados, mais de 6,3 milhões de deslocados internos e suas principais cidades em ruínas. No entanto, diferente dos anos anteriores, neste aniversário há a possibilidade de que a fase mais sangrenta da guerra termine, apesar de a paz ainda ser incerta, com a perspectiva de o governo de Bashar Al-Assad voltar a se consolidar no poder.
Aleppo, Síria | BARAA AL-HALABI/AFP/Getty Images |
No último um ano e meio, desde que a Rússia começou a bombardear o território sírio em apoio a Assad, o governo sírio pôde retomar territórios importantes e estratégicos, na costa do país. A região engloba Damasco, a capital, Aleppo, que já foi a segunda maior cidade, e Latakia, onde fica o principal porto do país.
A retomada de Aleppo das mãos dos vários grupos rebeldes, em dezembro de 2016, foi um símbolo das grandes batalhas sangrentas pelo controle territorial na Síria. A cidade ficou extremamente destruída, foi palco de execuções e provocou o êxodo de milhares de pessoas.
A reviravolta no controle governamental leva a crer, segundo especialistas, que a fase mais sangrenta da guerra pode estar acabando. O fim não está perto, nem a paz deve ser atingida rapidamente, mas é possível que os grandes combates diretos diminuam.
“O ápice da guerra já passou. O último ano, e especialmente o desenrolar da batalha de Aleppo, estabeleceram as condições para uma via de saída negociada. Mas a guerra deve seguir por algum tempo, ainda que já não possa mudar muito o resultado final”, afirma Salem Nasser, professor de Direito Global da FGV Direito SP.
Para Fernando Brancoli, professor de política internacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a mudança deverá ser visível no mapa da Síria. “A guerra da Síria está deixando de ser essa guerra civil clássica, em que o espaço nacional está dividido por diversos grupos, e vai se transformar em um país em que o governo detém a maior parte do território, mas os grupos rebeldes continuam atacando”, afirma.
“O mapa de áreas controladas provavelmente vai mudar. Ele vai virar um mapa em que supostamente quem controla é o governo. Mas esses grupos vão continuar pulverizados, misturados à população e gerando problemas para a Síria”, acrescenta.
Veja abaixo como está a situação em algumas cidades sírias:
Daraa: O controle da cidade onde começou a revolta contra o governo foi retomado pelas forças de Bashar Al-Assad mas ainda tem presença de rebeldes e é palco de alguns atentados.
Damasco: A capital é o principal reduto do regime. Mantém embaixadas de governos estrangeiros e vida social ativa. É poupada dos grandes combates, mas também é alvo de atentados. O último, reivindicado pela Frente Fateh al-Sham, ex-facção da rede Al-Qaeda, deixou 74 mortos.
Palmira: A cidade histórica, com mais de 2.000 anos de antiguidade e considerada Patrimônio Mundial da Humanidade da Unesco, foi tomada em dois momentos pelo grupo Estado Islâmico. Primeiro, em maio de 2015. Dez meses depois foi expulso pelos soldados sírios, apoiados pela aviação russa. Depois, em dezembro de 2016, sendo expulso novamente em março deste ano.
Raqqa: É considerada a "capital" do Estado Islâmico no país e do califado que o grupo criou na Síria e no Iraque, e onde aplica a lei islâmica (sharia). É alvo de bombardeios aéreos da coalizão comandada pelos EUA e de incursões da Força Aérea Russa.
Aleppo: Foi retomada das mãos dos rebeldes em dezembro de 2016 após mais de quatro anos de combates, o que foi considerado a maior vitória do governo desde o início da guerra. A segunda maior cidade do país era a capital econômica, mas tem grande parte destruída.
Assad no poder
Além de perder territórios, os grupos rebeldes também perderam força simbolicamente e já não mais apresentam a possibilidade de substituição do governo, como o Exército Livre da Síria chegou a ser visto no início do conflito.
Portanto, a guerra completa seu sexto ano com uma previsão pouco provável em anos anteriores: a ideia de que Bashar Al-Assad continuará no poder. “Apesar de Bashar ter cometido crimes de guerra, assassinato de civis e tortura, ele acabou virando uma espécie de único agente possível”, diz Brancoli, da UFRJ.
Pio Penna, professor de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB), concorda que a fase mais sangrenta da guerra passou, mas alerta para a violência que deverá ocorrer quando os governos sírio e russo focarem na derrota do grupo extremista Estado Islâmico.
“Não quer dizer que não teremos novos episódios sangrentos. Quando chegar a vez de Raqqa, não será agradável”, afirma sobre o que pode ocorrer na cidade que é considerada a “capital” no EI na Síria. “Outro tipo de violência, que não é a da guerra e a do combate, é a violência do próprio regime contra todos que considera opositores, como as violações de direitos humanos em prisões e torturas”, acrescenta.
Negociações de paz
Os diálogos de paz, que antes eram realizadas na Suíça com organização da ONU, em 2017 passaram a ser feitos no Cazaquistão, patrocinados por Rússia e Irã, principais aliados do governo de Bashar al-Assad, e Turquia, que respalda os grupos rebeldes.
Até o momento, as conversas não produziram nenhum avanço significativo, mas a mudança de local e da organização indica a vontade da Rússia de atuar de maneira mais enfática.
A mudança “indica uma movimentação de quem tem capacidade e quem tem certo capital simbólico na Síria hoje em dia. A ideia de mudar geograficamente inclusive a área de negociação e de quem decide quem vai também denota essa modificação no conflito”, afirma Brancoli.
Os Estados Unidos, por sua vez, tiveram um certo distanciamento em relação ao conflito com a eleição de Donald Trump, segundo apontam os especialistas. Desde sua campanha, Trump tem mostrado que seu foco é combater o EI, e nem tanto tirar Assad do poder, como defendia Obama.
"As declarações e as ações de Trump indicam uma postura favorável a uma solução pragmática para a Síria, sem um grande envolvimento dos EUA. Isso se combina com suas sinalizações a respeito de Putin e da Rússia, que são hoje os fiéis da balança na Síria", diz Salem Nasser, da FGV.
Como começou a guerra
Inspirados pelas revoluções da Primavera Árabe, protestos começaram em março de 2011 em Daraa reagindo à prisão e tortura de dois adolescentes que tinham grafitado o muro de uma escola. Os protestos tinham um caráter pacífico, com a maioria sunita -que se considera prejudicada pelo governo- e a população em geral reivindicando mais democracia e liberdades individuais.
No fim de julho do mesmo ano, centenas de milhares de sírios saíram às ruas em todo o país exigindo a saída de Assad.
Aos poucos, com a repressão violenta das forças de segurança, os protestos foram se espalhando pelo país e se transformando em uma revolta armada com o objetivo de derrubar o regime e apoiada por militares desertores e por grupos islamitas como a Irmandade Muçulmana, do Egito, e radicais como o grupo Al-Nursa, "franquia" da rede terrorista da Al-Qaeda, e mais tarde o Estado Islâmico. Atualmente, dezenas de grupos armados atuam na guerra.
Assad se recusou a renunciar, mas fez concessões para tentar aplacar os manifestantes. Ele encerrou o estado de emergência, que durava 48 anos, fez uma nova Constituição e realizou eleições pluripartidárias. Mas as medidas não convenceram a oposição, que continuou combatendo e exigindo sua queda.
A guerra se tornou ainda mais complexa na medida em que potências estrangeiras passaram a apoiar ambos os lados. Estados Unidos, Turquia e Arábia Saudita apoiam rebeldes. Os EUA, junto com Reio Unido e França, também realizam ataques aéreos. Rússia, Irã e o movimento Hezbollah no Líbano são aliados do governo sírio. Em 2016, o jornal "Washington Post" descreveu o conflito como uma "miniguerra mundial".
O número de mortes não é consenso. Segundo o enviado especial da ONU para a Síria, Staffan de Mistura, a guerra deixou 400 mil mortos. Observatório Sírio dos Direitos Humanos (OSDH), ONG com uma ampla rede de contatos no país, fala em 320 mortos. Já o Centro Sírio para Pesquisa Política, estima 470 mil mortos.