O desenvolvimento da versão biplace do Gripen NG não é apenas importante para a absorção de tecnologia pela indústria nacional. É fundamental para a atualização dos modelos de obtenção de capacidades, e o próprio futuro da Força Aérea Brasileira.
Vianney Júnior | DefesaNet
Quando em 24 de outubro de 2014 foi selado com as assinaturas do presidente da SAAB, Håkan Buskhe, e do Tenente-Brigadeiro-do-Ar Alvani Adão da Silva, então Diretor do Departamento de Ciência e Tecnologia Aeroespacial (DCTA), o contrato para a produção de 36 aeronaves de caça, Gripen, sendo 28 do modelo E (para um piloto), e 8 da versão F (biplace – com dois assentos), a indústria aeroespacial brasileira ganhava a oportunidade para dominar o design e a produção de aeronaves supersônicas. A Força Aérea, por sua vez, participava de uma decisão que afetaria diretamente seu futuro pelos próximos quarenta anos, e consequentemente transformaria a forma de emprego da arma aérea.
JAS 39 Gripen NG |
A proposta vencedora do programa F-X2, destinado ao reequipamento e modernização da frota de aeronaves militares supersônicas da Força Aérea Brasileira propiciaria, para além de uma nova aeronave, a oportunidade da incorporação do conceito multirole, ou de múltiplas missões. Assim sendo, uma profunda transformação entraria em curso desde a escolha do caça a ser adquirido.
O início da evolução
O acompanhamento do desenvolvimento e fabricação do Gripen E, por parte de equipes de profissionais brasileiros, tem sido a fase inicial da transferência de tecnologia. As primeiras aeronaves serão construídas na Suécia, e paulatinamente terão sua manufatura transferida para linhas de montagem no Brasil. Já o Gripen F (biplace) será produzido exclusivamente para a Força Aérea Brasileira, caso em que os engenheiros brasileiros deverão ter participação desde o design do caça para dois tripulantes, até sua certificação de sistemas de voo e missão, e integração final de armamentos a serem adotados pela versão brasileira do Gripen de Nova Geração.
O plano de produção prevê a entrega do primeiro caça para 2019 (porém sem capacidade plena para todas as missões – multirole), e do último dos 36 Gripens para 2024 (com todos os caças com a completa integração de todas as armas e sistemas – capacidade multimissão).
A aquisição de um caça multirole, como já dito, não representa simplesmente a substituição de aeronaves com fins específicos, por uma de modelo único, capaz de realizar todas suas missões. Não! Não é trocar seis por meia dúzia. É bem mais que isso. É fazer mais com menos. Representa uma economia, por intermédio da padrozinação, que vai do ferramental ao treinamento unificado. A própria estrutura de suprimento e manutenção deve ser em seu todo reorganizada. É literalmente a implantação de um novo modelo de esquadrão.
F: um caça para dois tripulantes
Dentro da mesma lógica, seria um enorme desperdício imaginar o emprego do Gripen F (biplace) na função de treinador. Ainda mais, um que atinge, considerados os custos de seu desenvolvimento, reserva técnica e pacote de armamentos, cifras acima de 100.000.000 de dólares por unidade. Muito melhor, sob o aspecto de custo-eficiência, seria adotar o modelo já consagrado internacionalmente de conversão a partir do treinamento em simulador, uma vez que este tipo de recurso já atingiu um grau de fidelidade extremamente confiável. Na pior das hipóteses, por excesso de zelo, ou mesmo redundância, poderia se considerar a conversão final junto à Força Aérea Sueca, em caças Gripen do modelo D – a versão biplace do caça sueco, em operação – por meio de acordo de cooperação com ônus.
O melhor emprego de caças de primeira linha para dois tripulantes, hoje, é outro. O caça biplace assume em forças aéreas mundo afora, as missões de maior complexidade, nas quais destacam-se a penetração sobre capacidades A2/AD (Anti-Access/Area-Denial) para supressão de defesas inimigas (SEAD), guerra eletrônica, e mesmo ataque nuclear.
Também têm sido frequentes as pesquisas para emprego em missões combinadas com UCAVs (aeronaves de combate não-tripuladas), uma tendência reconhecida pela comunidade especializada internacional, que questiona a própria presença de piloto humano nos caças pós sexta geração.
Para a realidade presente, a composição da tripulação em um caça biplace pode variar, vindo a ser composta por um piloto e um oficial de sistemas e armas, ou por um piloto e um oficial de guerra eletrônica, ou ainda, visando sua atuação como FAC - Forward Air Controller, um comando e controle de forças avançado, uma função cada vez mais demandada e expandida em tempos de sistemas de enlace de dados (data-links) mais eficientes, armamentos de ataque à distância fora do alcance da defesa aérea inimiga (standoff) mais precisos, e a interação de Forças multinacionais em ações conjuntas.
O display único de grande aérea – outra exclusividade brasileira
Além da incorporação de oito aeronaves biplace, com dois tripulantes, a escolha da FAB traz para as linhas de voo de nossas unidades aéreas uma outra exclusividade: o WAD – Wide Area Display, ou painel único de grande área. Este item representa bem mais que uma sofisticação tecnológica. Eu defino como uma ferramenta para se manter eficiência em combate, dentro de um futuro projetado de 30 anos (média de vida dos F-5 da FAB, principal vetor de primeira linha na atualidade).
Poderia me estender, mas resumo minha explicação e defesa às vantagens do WAD em dois pontos, os quais são mais facilmente compreensíveis àqueles com afinidade à duas disciplinas: primeiro, conhecimento de combate aéreo, seja ele dentro do cenário WVR (Alcance Visual), ou BVR (Beyond Visual Range – Além do Alcance Visual); segundo, conhecimento de tecnologias de redução do workload dos pilotos envolvidos em tais combates, conferindo vantagem situacional, de comando e controle, tática, ou operacional.
Primeiro ponto: Não se trata de jogar reloginhos, ou mesmo três telinhas dentro do WAD. Diz respeito a como otimizar a interação entre o piloto e as informações de sensores, radares, controle e armamentos – parte integrante da tal HMI (Human-Machine Interface). O recurso touchscreen é certamente uma vantagem importante, mas o desenvolvimento e evolução constante de softwares próprios que levem em conta as necessidades dos pilotos e as táticas por eles utilizadas, adicionam um diferencial ainda maior, em combate. Uma interpretação desta vantagem poderia vir do termo propagandista, “See-First, Shoot-First”.
Na verdade, a tradução mais próxima da realidade seria, “ter a consciência da situação primeiro, e melhor posicionar os elementos para empregar o armamento dentro da distância de maior efetividade, ao tempo que manobram evasivamente para quebrar o tracking e evitar o lock-on do ataque inimigo”. Não tenham dúvida de que a FAB está atenta ao desenvolvimento do WAD para que esta exclusividade do Gripen Brasileiro alcance toda a extensão de suas possibilidades, com uma fusão de dados (Data Fusion) ideal e interação (HMI) ativa do piloto, e não apenas joguem para dentro de uma tela LCD as dispersas informações de múltiplos sensores e sistemas.
Segundo ponto: A “upgradabilidade”. Lembra do seu celular de teclinhas? Aquela tecla “B” continua só sabendo ser maiúscula ou minúscula. No máximo, uma ou outra função associada a um aplicativo específico ou uma combinação de teclas pressionadas ao mesmo tempo (que trabalheira!). Ela continuará no mesmo lugar, e não poderá ser mudada de posição, tamanho ou ainda excluída, quando for o caso de você não precisar vê-la ou utilizá-la. Já o seu novo celular, com tela touchscreen progamável, aceita transformar-se no que você precisar. Havendo a interface adequada, ele vira câmera fotográfica, ou filmadora, com todos os flashes, zooms e balances na ponta de um abrir ou fechar de seus dedos. Ele pode, até mesmo, com um suave toque em um ícone na tela principal, transformar-se em um sofisticadíssimo e poderoso radar caçador de Pokémons! Se não sabia deste poderoso recurso, pergunte a seus filhos, sobrinhos ou netos. E tudo isso pode ser atualizado e modificado a qualquer tempo. Faça a analogia por si só, e chegue às conclusões correlatas.
A partir do desenvolvimento do Gripen NG BR, o WAD passará a ser o padrão ofertado na versão de exportação do “caça sueco com tempero brasileiro”.
Gripen biplace + WAD: O trunfo da FAB
A incorporação de novos vetores, suportados por novas tecnologias dão à Força Aérea Brasileira uma fabulosa oportunidade para atualização de doutrinas de emprego, algo que representa mais um passo da maturidade e constante busca pela eficiência e eficácia. Ações que permitam à FAB fazer face aos desafios e cenários de um mundo em constante transformação e atribulado por emergentes inquietações.
Mais do que a própria entrada em serviço do Gripen NG e toda a transformação positiva que ele provocará na operacionalidade da FAB, uma nova visão aplicada ao emprego de sua versão biplace pode render frutos importantes à Força Aérea.
Vários estudos sobre a guerra aérea e em particular sobre o emprego de caças, apontam o vetor no futuro como uma espécie de nó. Um elo de ligação entre os ativos disponíveis dentro de um conceito de guerra em rede – battle network. Para alguns dos analistas mais incisivos envolvidos nestes estudos, o prórpio termo “caça” estaria se tornando ultrapassado. Nas palavras do Coronel da Força Aérea Americana (USAF) Alex Grynkewich, chefe do grupo de trabalho Air Superiority 2030 – que apresentou cursos de ação para a conquista da superioridade aérea em torno do ano 2030 – a melhor denominação seria “sensor-shooter” dentro de uma ampla rede de batalha.
O caça biplace, dentro das perspectivas do futuro, oferece uma alternativa. Um caminho a seguir. A presença de um segundo tripulante, que além da formação como piloto, tenha um treinamento específico para atuar na missão como gestor dedicado de sistemas e armas, ou como operador de ataque eletrônico, ou ainda, como controlador avançado, tendo em seu favor uma interação superior com a fusão de dados apresentados no WAD, comporia um elemento interessante dentro do emprego da arma aérea. É claro que para tornar realidade esta composição de tripulação, é imprescindível a presença dos demais componentes de uma rede de batalha, sem falar dos sistemas dedicados, tais como pods específicos de guerra eletrônica, designação de alvos, e armamentos especializados (anti-radiação, ataque marítimo, etc).
A SAAB, fabricante do Gripen, já de algum tempo estuda a interação dos atuais modelos C/D com o demonstrador europeu de tecnologia para drone de combate, o nEUROn, no qual a empresa sueca tem participação no desenvolvimento. Embora uma realidade um pouco mais distante do Brasil, que adota a nomenclatura ARP – Aeronave Remotamente Pilotada, a formação Gripen F com drones não deveria ser descartada. O desenvolvimento da ARP CAT 4 já prevê a capacidade de ataque ar-superfície. Como evolução natural, e acompanhando as tendências de projeção de poder concomitantemente à redução de exposição à perdas, o emprego caça/drone se desenha. Aos mais conservadores devemos lembrar que em 2024, ano previsto para a entrega da última aeronave do lote de 36 caças, esta visão não deva parecer tão futurista.
Um ponto forte do Gripen é o nível atingido por seu sistema de enlace de dados, ou data-link. O cenário daqui mais quinze anos, prevê um franco crescimento da guerra cibernética, o que exigirá além de novos recursos tecnológicos, um preparo mais específico das tripulações. A fusão de dados de radares e sensores, e o compartilhamento de informações de consciência situacional de um por todos - via link entre ARPs, caças e mesmo armas (mísseis e bombas inteligentes), terá a capacidade de estender os olhos e garras do piloto à distâncias consideráveis.
O “jogo da hiena” – no qual diferentes caças de uma esquadrilha se alternam para “acoplar” momentaneamente no inimigo, passando via link os dados do alvo à seguinte, voltando ao modo passivo, para que finalmente o melhor caça posicionado realize o ataque – será cada vez mais essencial para combater um inimigo em maior número, ou mesmo com um arsenal mais avançado tecnologicamente.
O Link BR2 é uma outra iniciativa para o domínio nacional da tecnologia de enlace de dados, e é previsto para integrar-se aos meios de comunicação tática do Gripen NG. Apesar da importância do projeto, os riscos de seu desenvolvimento carecem de constante revisão. Além dos recursos demandados que impactam no custo-benefício do Link BR2, a integração do sistema em plataformas de diferentes fabricantes pode provocar uma gestão difícil. Porém, apostando no sucesso da empreitada, uma versão deste sistema de enlace de dados deve compor o pacote da versão para exportação do Gripen NG. Mas isso é assunto para uma outra análise.
O Gripen F ainda está em desenvolvimento, mas já foi anunciado que não deverá ter armamento interno – o canhão alemão Rheinmetall BK27 de 27 mm que equipa a versão E, monoposto. Isto não o impede de adotar um casulo para canhão externo, somado a outras configurações de armamentos que garantam a capacidade de defesa do caça biplace da FAB.
O Gripen como passaporte para o futuro
O Gripen NG, e em especial o desenvolvimento de sua versão biplace, o Gripen F, faz o Brasil entrar no seleto grupo de fabricantes de aeronaves supersônicas, detendo por força de seu contrato, parte da propriedade intelectual envolvida no projeto, mas a conclusão do programa F-X2, a escolha do Gripen, seu desenvolvimento, e sua produção não devem representar um fim em si. A experiência reunida na luta para modernização e reequipamento da Força Aérea Brasileira – uma penosa batalha de mais de 15 anos – deve fornecer subsídios para a revisão da própria política de aquisição de produtos de defesa (hoje denominada “obtenção” pelo Ministério da Defesa).
Uma discussão que tem sido objeto das maiores forças aéreas do mundo é o processo de incorporação de capacidades. Ainda mais importante que o conceito de aeronaves de 5ª, 6ª, ou mesmo 7ª geração e a revisão de suas próprias funções e responsabilidades dentro do poder aéreo agora e no futuro, está a necessidade de se criar uma estratégia de obtenção ágil e dinâmica. A otimização da aplicação de recursos requer antes de tudo uma compreensão integrada e multidisciplinar das capacidades e missões de uma Força, no sentido de assegurar que esta Força esteja apta a bem cumprir as missões a ela designadas, em condições de fazê-lo dentro da completa interoperabilidade necessária à operação conjunta com as demais Forças, sejam elas navais, terrestres, e ou mesmo, de coalizões com outros países, em que venha tomar parte.
Os principais estudos sobre o tema, apontam que os correntes modelos de obtenção, de uma forma geral adotados por estes países, têm conduzido a uma situação “late-to-need”, ou em livre tradução, capacidades disponibilizadas tardiamente ante às necessidades operacionais.
Sugiro como leitura complementar, minha análise “Command of the Air in the 2030s”, publicada pela Royal Aeronautical Society, no contexto da concorrida conferência “Air Power: Now and the Future” (http://aerosociety.com/Events/Event-List/2643/Air-Power-Now-and-the-Future) a ser iniciada em 29 de setembro, no museu da Royal Air Force (RAF), em Londres.
Talvez a realidade do Brasil esteja longe das que conduziram às conclusões apontadas por aqueles estudos, mas não se pode justificar nesta distância que não se caminhe para a mudança da nossa. Somente o olhar antecipado será capaz de indicar os meios e processos que levem à obtenção das capacidades requeridas para o irrefutável futuro – integrado e centrado-em-rede.
Esta abordagem demanda uma alavancagem da experimentação, prototipagem e agilidade estratégica de obtenção. É necessário que seja dado à Força Aérea as condições para o desenvolvimento de uma família de capacidades para operar no campo aéreo, no campo espacial, e no espaço cibernético, ambientes cujo domínio são necessários a uma completa garantia da soberania dos céus sobre um país.
Quanto à contribuição do Gripen nessa passagem para o futuro, lembramos que a própria SAAB em conjunto com a Força Aérea Sueca já desenvolvem trabalhos nesta direção, e tornam-se assim, parceiros naturais do Brasil no árduo caminho para o desenvolvimento e obtenção de modernas capacidades.