A retirada inesperada das tropas russas na Síria deixou muitos observadores perplexos. Como ficará a situação de Assad? O Estado Islâmico ainda tem poder de combate? De tudo, uma coisa é certa: decisão incita coalizão liderada pelos EUA a concluir missão.
Evguêni Krutikov | Gazeta Russa
A retirada das tropas russas da Síria tem levantado inúmeras questões. Por que, por exemplo, isso aconteceu antes da retomada de Raqqa, considerada a capital do Estado Islâmico (EI)? O que vai acontecer agora com o líder sírio Bashar al-Assad, cuja posição ficou agora enfraquecida? E, finalmente, é correto traçar uma comparação com o fim da operação soviética no Afeganistão, que levou a consequências infelizes?
Se derrubar o EI, Washington pode ficar com os louros da vitória Foto:Iorch |
Não importa o grau de retórica pública no triângulo Rússia-Ocidente-Damasco, é preciso entender que não haveria uma retirada sem garantias para Assad e sem fixar o panorama geral do sistema político da Síria durante um período transitório. Portanto, tanto os negociadores dos EUA como os das União Europeia estão internamente preparados para o fato de que Assad não irá a lugar algum no futuro próximo.
De um modo geral, a recente decisão russa é mais parecida com a retirada das tropas norte-americanos do Afeganistão do que das tropas soviéticas no país. As bases permaneceram, assim como a infraestrutura e um contingente suficiente, enquanto as tropas de Damasco foram parcialmente reequipadas e, em alguns casos, até treinadas.
Enquanto isso, a situação nas linhas de frente regulares é estável, com chances a favor do governo local, e as conversações de paz estão sendo realizadas sobre uma base paritária. Ninguém foi “à deriva” – muito pelo contrário.
Assad sozinho, de novo
Vamos começar com o fato de que a infraestrutura da oposição e do EI foram destruídas de tal forma que só seriam capazes de conduzir uma ação eficaz no plano teórico. Foi exatamente isso que tentaram fazer há uma semana, capturando vários trechos na estrada para Aleppo, mas acabaram sendo eliminados um dia depois.
Esse acontecimento foi tão divulgado que dava a impressão de uma vitória global. Na realidade, um ataque desse tipo, com forças unidas não atingindo o contingente de um batalhão sequer, é a única coisa da qual os jihadistas são capazes agora.
Por outro lado, a posição diplomática de Assad ficou claramente enfraquecida. Se os alvos militares definidos para o grupo russo foram, de um modo geral, atingidos com sucesso, os resultados políticos são, por enquanto, um pouco mais difíceis de avaliar.
De fato, Damasco não deve estar completamente satisfeita com o resultado dos acontecimentos. O Exército sírio foi interrompido em sua capacidade máxima, e Assad deixou de ser capaz de lidar com as intrigas multivetoriais típicas do Oriente.
O presidente sírio foi traído por muitas pessoas, incluindo aliados mais próximos, o que demandará mais esforços diplomáticos e “de bastidores” para treinar todos os atores envolvidos no conflito a fazer concessões.
Paralelamente, o fato de as negociações intra-Sírias terem sido iniciadas, bem como a preservação e a estabilidade do poder no país, já pode ser considerado um sucesso.
EI à mercê dos EUA
Agora, a coalizão liderada pelos Estados Unidos está sozinha para lidar com o EI – tanto no Iraque e na Síria. Sua força de combate é fraca, mas ninguém impede o grupo de se erguer. E, neste caso, Washington seria coroada com os louros da vitória.
Faz sentido supor que o EI enfraquecido foi jogado à mercê da coalizão liderada pelos EUA em troca da manutenção da estabilidade da Síria. Não em termos de estabilidade para a família Assad, embora isso seja importante, mas para a preservação de uma configuração mutuamente aceitável de poder no Oriente Médio.
Assim, a destruição do grupo terrorista agora é apenas uma questão de tempo e muitas perdas. Se a coalizão liderada pelos EUA estiver pronta para assumir essa responsabilidade, ninguém irá impedi-los – mas também não haverá quem ajudá-los.
Hoje, até mesmo a retomada de Palmira não é de importância crucial, exceto ideologicamente, uma vez que os terroristas já destruíram tudo o que podiam por lá. Mas a atenção de Damasco já foi desviada para conversações com aqueles que estão prontos para chegar a um consenso.
Sofrer grandes perdas por um pedaço de deserto inabitado, mesmo com a perspectiva de avançar sobre Raqqa, é, no momento, um desperdício de recursos.
Além disso, a retomada dessa cidade é uma operação questionável por princípio. Durante o período em que a cidade vem sendo considerada a capital não oficial do EI, resta parte da população que acha confortável viver sob este regime.
Isso pode parecer chocante para um brasileiro, norte-americano ou europeu, mas fato é que o Estado Islâmico goza de certo apoio nas províncias. Há diversas pessoas que preferem o comércio de escravos a trabalhar, gostam de assistir a execuções públicas e estupro para fins religiosos, e assim por diante.
O que fazer com esses indivíduos se Raqqa for libertada? Seriam anistiados ou não haveria qualquer misericórdia? Esta questão pode ser muito mais complexa do que até mesmo o timing e o mecanismo das eleições. E, talvez, por isso, avançar pelo deserto agora esteja fora de questão.
Evguêni Krutikov é analista político especializado em Cáucaso e Balcãs.