Apesar de críticas a ataques contra civis, solidez da aliança permanece
Flávia Barbosa | O Globo
WASHINGTON — A violência da resposta militar de Israel ao Hamas na Faixa de Gaza irritou a Casa Branca. Surpreendendo observadores americanos e internacionais, os EUA emitiram, num espaço de cinco dias, condenações veementes aos bombardeios de duas escolas da ONU em Gaza, que mataram 26 pessoas em 30 de julho e 3 de agosto, adicionando tensão à já esgarçada relação entre o presidente Barack Obama e o premier Benjamin Netanyahu. A retórica, porém, não alterou a prática. No mesmo período, os EUA mais uma vez correram em auxílio do principal aliado no Oriente Médio, liberando armamentos e dinheiro para fortalecer o poderio militar israelense. Por isso, especialistas afirmam que, mesmo com o número crescente de vozes críticas na comunidade judaica e na sociedade em geral, não se deve esperar que palavras se convertam tão cedo em mudanças na política externa americana.
Na tarde do primeiro ataque, o Pentágono foi autorizado a abrir o estoque que mantém em Israel e atender pedido para reposição imediata de munição e armas, numa contratação de US$ 1 bilhão. Dois dias depois, o Congresso aprovou, por unanimidade no Senado e só oito votos contra na Câmara, US$ 225 milhões emergenciais para consertar e reequipar o sistema antimísseis Domo de Ferro — principal defesa contra a artilharia do Hamas. Obama sancionou a lei imediatamente.
Historiador da Universidade do Michigan, Juan Cole afirma que os EUA poderiam ter feito escolhas diferentes. Um massacre de partidários da Irmandade Muçulmana, ano passado, levou à suspensão da venda de armas ao Egito, segundo maior destino de ajuda militar dos EUA. Mas há forças históricas que tornam esta mudança de curso muito difícil, diz Cole:
— Não vejo chance de ruptura entre EUA e Israel. É um compromisso de longo prazo, muito enraizado, com estrondosa base de apoio doméstico. Não é apenas Obama. O partido tem que eleger bancadas. Se você é democrata num estado disputado e está em campanha no ano em que o presidente não demonstra apoio a Israel, a oposição vai te atacar por isso.
Cole explica que Israel, desde a Guerra Fria, é elemento estabilizador do Oriente Médio no tabuleiro americano. Não à toa, recebe 55% da assistência militar externa dos EUA, ou US$ 3,1 bilhões. O acordo estratégico prevê atualização do poderio militar israelense, fomento a quatro sistemas antimísseis e recursos para programas de refugiados, saúde e educação. A ajuda chega a US$ 121 bilhões entre 1949 e 2014, sem equiparação com outra nação.
OPINIÃO PÚBLICA E LOBBY A FAVOR
Tamanho aparato só é possível porque a opinião pública americana está alinhada com a causa: 51% simpatizam mais com Israel e só 14% com a Palestina, mostrou o Pew Research Center. Americanos creditam ao Hamas (40%) a escalada da violência e metade considera a resposta de Israel apropriada (35%) ou insuficiente (15%), mesmo com o repúdio internacional.
Segundo Melani McAlister, especialista em Cultura e Política dos EUA para o Oriente Médio na Universidade George Washington, há uma conexão emocional devido à atuação americana na Alemanha nazista e à cultura religiosa do país, dominada por denominações cristãs evangélicas e protestantes. A isso se soma a percepção de valores compartilhados, por ser Israel a democracia mais próxima dos ideais americanos no Oriente Médio.
— O lobby da comunidade judaica se constrói a partir desses valores. Os judeus americanos, apenas 17 milhões, são civicamente muito ativos e têm uma rede de doações a museus, universidades, hospitais, o que os torna influentes e gera simpatia adicional — complementa Cole.
A principal voz do lobby nos EUA é o Comitê de Assuntos Públicos EUA-Israel (Aipac). Fundado há 51 anos, tem como missão declarada fortalecer o ativismo pró-Israel e construir relações com os dois partidos no Congresso para promover a aliança. Sua agenda parte do princípio de que Israel tem direito inalienável à autodefesa, o que justifica confrontos como o atual, ocupação de territórios na Cisjordânia e o bloqueio a Gaza.
A Aipac mantém estreita relação com autoridades de Israel. Trabalha para aprovar leis, orçamento e moções em linha com sua plataforma. Nem sempre vence. Por exemplo, não foi capaz de convencer congressistas a decretar novas sanções ao Irã, para minar as negociações em torno do programa nuclear. Ainda assim, é considerado o terceiro lobby mais poderoso em Washington, atrás da NRA (armas) e da associação de aposentados.
A entidade não financia campanhas políticas. Mas incentiva a comunidade judaica a fazer doações. Na corrida presidencial de 2012, sete dos dez maiores doadores eram judeus, que desembolsaram juntos mais de US$ 165 milhões.
O sustentáculo é grande, mas não infalível, alerta Melani. Ela observa que, diante da violência do conflito, a mídia faz cobertura menos maniqueísta e as redes sociais estão atuantes, como ocorreu com o correspondente da NBC Ayman Mohyeldin, que, afastado após reportagem favorável aos palestinos, voltou pela pressão. Colunistas judeus e rabinos têm feito críticas abertas nos jornais, sites e TV. Há forças atuando em direção a uma postura contrária ao alinhamento automático dos EUA, diz a professora:
— Desde a guerra de Israel com o Líbano em 1982 não se via reação tão forte da opinião pública americana. A Primavera Árabe deu nova dimensão a esperanças e sonhos no Oriente Médio, com as quais os jovens americanos judeus e em geral se identificam, os afastando do dogma.
VOZES DISSIDENTES
Os últimos seis meses têm sido de dissidências. Em fevereiro, a American Studies Association, que publica a American Quarterly e tem cinco mil associados, aprovou o boicote a instituições de ensino e pesquisa. Em junho, a assembleia geral das igrejas presbiterianas americanas endossou o boicote a três empresas (Caterpillar, HP e Motorola) por “lucrarem com a opressão dos palestinos dentro dos territórios ocupados por Israel”.
A assembleia foi alvo do lobby da Aipac, mas também dos críticos, como a Jewish Voice for Peace (JVP), porto seguro de ativistas que não concordam com o alinhamento automático a Tel Aviv. Segundo a rabina Alissa Wise, diretora da entidade, em apenas três semanas a lista de e-mails da JVP — que defende boicote a empresas e fim do bloqueio, das ocupações e do envio de armas pelos EUA — ganhou 50 mil novos nomes e 16 filiais estão sendo abertas em todo o país, contra 40 criadas em 14 anos.
— O que está acontecendo em Gaza agora é tão absurdo que o dique se rompeu e uma quantidade imensa de gente da comunidade está simplesmente se sentindo na obrigação de dizer: não vão fazer isso em meu nome, não! Há uma mudança de valores porque se atingiu a compreensão de que, sem resistência, nunca Israel, que defendemos, vai mudar de cálculo — diz a rabina. — É uma guerra de opinião e o caminho a seguir é o que pôs fim ao apartheid, crescer também internacionalmente o repúdio para isolar os EUA e alcançar consenso sem volta.
Melani vê questionamento também na sociedade em geral, reflexo de mudanças geracionais e comportamentais. Na pesquisa do Pew, jovens entre 18 e 29 anos culpam mais Israel (29%) do que o Hamas (21%) pelo conflito. O apoio dos independentes (maior grupo político) caiu 6 pontos entre abril e julho e está em 45%. Evangélicos (70%) e protestantes (60%) estão alinhados, enquanto entre americanos sem afiliação religiosa — fatia que mais cresce — não passa de 36% o apoio, que é de 20% aos palestinos.
— Não vai acontecer do dia para a noite. O conflito em Gaza está mostrando às pessoas a realidade e quanto mais souberem mais se importarão com uma solução de longo prazo. Isso que levará os EUA a mudarem, Israel a rever sua postura e trará finalmente paz — afirma a rabina.
WASHINGTON — A violência da resposta militar de Israel ao Hamas na Faixa de Gaza irritou a Casa Branca. Surpreendendo observadores americanos e internacionais, os EUA emitiram, num espaço de cinco dias, condenações veementes aos bombardeios de duas escolas da ONU em Gaza, que mataram 26 pessoas em 30 de julho e 3 de agosto, adicionando tensão à já esgarçada relação entre o presidente Barack Obama e o premier Benjamin Netanyahu. A retórica, porém, não alterou a prática. No mesmo período, os EUA mais uma vez correram em auxílio do principal aliado no Oriente Médio, liberando armamentos e dinheiro para fortalecer o poderio militar israelense. Por isso, especialistas afirmam que, mesmo com o número crescente de vozes críticas na comunidade judaica e na sociedade em geral, não se deve esperar que palavras se convertam tão cedo em mudanças na política externa americana.
Na tarde do primeiro ataque, o Pentágono foi autorizado a abrir o estoque que mantém em Israel e atender pedido para reposição imediata de munição e armas, numa contratação de US$ 1 bilhão. Dois dias depois, o Congresso aprovou, por unanimidade no Senado e só oito votos contra na Câmara, US$ 225 milhões emergenciais para consertar e reequipar o sistema antimísseis Domo de Ferro — principal defesa contra a artilharia do Hamas. Obama sancionou a lei imediatamente.
Historiador da Universidade do Michigan, Juan Cole afirma que os EUA poderiam ter feito escolhas diferentes. Um massacre de partidários da Irmandade Muçulmana, ano passado, levou à suspensão da venda de armas ao Egito, segundo maior destino de ajuda militar dos EUA. Mas há forças históricas que tornam esta mudança de curso muito difícil, diz Cole:
— Não vejo chance de ruptura entre EUA e Israel. É um compromisso de longo prazo, muito enraizado, com estrondosa base de apoio doméstico. Não é apenas Obama. O partido tem que eleger bancadas. Se você é democrata num estado disputado e está em campanha no ano em que o presidente não demonstra apoio a Israel, a oposição vai te atacar por isso.
Cole explica que Israel, desde a Guerra Fria, é elemento estabilizador do Oriente Médio no tabuleiro americano. Não à toa, recebe 55% da assistência militar externa dos EUA, ou US$ 3,1 bilhões. O acordo estratégico prevê atualização do poderio militar israelense, fomento a quatro sistemas antimísseis e recursos para programas de refugiados, saúde e educação. A ajuda chega a US$ 121 bilhões entre 1949 e 2014, sem equiparação com outra nação.
OPINIÃO PÚBLICA E LOBBY A FAVOR
Tamanho aparato só é possível porque a opinião pública americana está alinhada com a causa: 51% simpatizam mais com Israel e só 14% com a Palestina, mostrou o Pew Research Center. Americanos creditam ao Hamas (40%) a escalada da violência e metade considera a resposta de Israel apropriada (35%) ou insuficiente (15%), mesmo com o repúdio internacional.
Segundo Melani McAlister, especialista em Cultura e Política dos EUA para o Oriente Médio na Universidade George Washington, há uma conexão emocional devido à atuação americana na Alemanha nazista e à cultura religiosa do país, dominada por denominações cristãs evangélicas e protestantes. A isso se soma a percepção de valores compartilhados, por ser Israel a democracia mais próxima dos ideais americanos no Oriente Médio.
— O lobby da comunidade judaica se constrói a partir desses valores. Os judeus americanos, apenas 17 milhões, são civicamente muito ativos e têm uma rede de doações a museus, universidades, hospitais, o que os torna influentes e gera simpatia adicional — complementa Cole.
A principal voz do lobby nos EUA é o Comitê de Assuntos Públicos EUA-Israel (Aipac). Fundado há 51 anos, tem como missão declarada fortalecer o ativismo pró-Israel e construir relações com os dois partidos no Congresso para promover a aliança. Sua agenda parte do princípio de que Israel tem direito inalienável à autodefesa, o que justifica confrontos como o atual, ocupação de territórios na Cisjordânia e o bloqueio a Gaza.
A Aipac mantém estreita relação com autoridades de Israel. Trabalha para aprovar leis, orçamento e moções em linha com sua plataforma. Nem sempre vence. Por exemplo, não foi capaz de convencer congressistas a decretar novas sanções ao Irã, para minar as negociações em torno do programa nuclear. Ainda assim, é considerado o terceiro lobby mais poderoso em Washington, atrás da NRA (armas) e da associação de aposentados.
A entidade não financia campanhas políticas. Mas incentiva a comunidade judaica a fazer doações. Na corrida presidencial de 2012, sete dos dez maiores doadores eram judeus, que desembolsaram juntos mais de US$ 165 milhões.
O sustentáculo é grande, mas não infalível, alerta Melani. Ela observa que, diante da violência do conflito, a mídia faz cobertura menos maniqueísta e as redes sociais estão atuantes, como ocorreu com o correspondente da NBC Ayman Mohyeldin, que, afastado após reportagem favorável aos palestinos, voltou pela pressão. Colunistas judeus e rabinos têm feito críticas abertas nos jornais, sites e TV. Há forças atuando em direção a uma postura contrária ao alinhamento automático dos EUA, diz a professora:
— Desde a guerra de Israel com o Líbano em 1982 não se via reação tão forte da opinião pública americana. A Primavera Árabe deu nova dimensão a esperanças e sonhos no Oriente Médio, com as quais os jovens americanos judeus e em geral se identificam, os afastando do dogma.
VOZES DISSIDENTES
Os últimos seis meses têm sido de dissidências. Em fevereiro, a American Studies Association, que publica a American Quarterly e tem cinco mil associados, aprovou o boicote a instituições de ensino e pesquisa. Em junho, a assembleia geral das igrejas presbiterianas americanas endossou o boicote a três empresas (Caterpillar, HP e Motorola) por “lucrarem com a opressão dos palestinos dentro dos territórios ocupados por Israel”.
A assembleia foi alvo do lobby da Aipac, mas também dos críticos, como a Jewish Voice for Peace (JVP), porto seguro de ativistas que não concordam com o alinhamento automático a Tel Aviv. Segundo a rabina Alissa Wise, diretora da entidade, em apenas três semanas a lista de e-mails da JVP — que defende boicote a empresas e fim do bloqueio, das ocupações e do envio de armas pelos EUA — ganhou 50 mil novos nomes e 16 filiais estão sendo abertas em todo o país, contra 40 criadas em 14 anos.
— O que está acontecendo em Gaza agora é tão absurdo que o dique se rompeu e uma quantidade imensa de gente da comunidade está simplesmente se sentindo na obrigação de dizer: não vão fazer isso em meu nome, não! Há uma mudança de valores porque se atingiu a compreensão de que, sem resistência, nunca Israel, que defendemos, vai mudar de cálculo — diz a rabina. — É uma guerra de opinião e o caminho a seguir é o que pôs fim ao apartheid, crescer também internacionalmente o repúdio para isolar os EUA e alcançar consenso sem volta.
Melani vê questionamento também na sociedade em geral, reflexo de mudanças geracionais e comportamentais. Na pesquisa do Pew, jovens entre 18 e 29 anos culpam mais Israel (29%) do que o Hamas (21%) pelo conflito. O apoio dos independentes (maior grupo político) caiu 6 pontos entre abril e julho e está em 45%. Evangélicos (70%) e protestantes (60%) estão alinhados, enquanto entre americanos sem afiliação religiosa — fatia que mais cresce — não passa de 36% o apoio, que é de 20% aos palestinos.
— Não vai acontecer do dia para a noite. O conflito em Gaza está mostrando às pessoas a realidade e quanto mais souberem mais se importarão com uma solução de longo prazo. Isso que levará os EUA a mudarem, Israel a rever sua postura e trará finalmente paz — afirma a rabina.