Sem maridos e privadas do conforto de seus lares, mulheres cuidam sozinhas de seus filhos, diz relatório da ONU
KARINA HERMESINDO | O GLOBO
Nuha (nome fictício) de 45 anos chegou ao Cairo vindo de Aleppo, na Síria, com seu marido e seus três filhos pequenos. Eles fugiam da guerra, da fome e da morte. Nos primeiros meses na cidade o marido de Nuha trabalhou como motorista de tuc-tuc. Ele cuidava das finanças da família, das despesas, das compras no supermercado, enquanto Nuha era dona de casa, cuidava das crianças. Até que mais uma tragédia aconteceu na sua vida: seu marido foi assassinado no trabalho. "Eu não quero sair de casa por causa da tristeza que eu tenho no coração. Nós fugimos da morte na Síria e ela nos encontrou aqui, no Egito", disse.
A história triste de Nuha é apenas mais uma das muitas descritas no relatório da Agência da ONU para refugiados, divulgado nesta terça-feira, que traz a dura realidade enfrentada por 145 mil sírias que lutam sozinhas para cuidar de sua famílias, após terem sido obrigadas a deixarem seu país por causa da guerra civil que já dura há mais de três anos, mostra um relatório divulgado pelo Alto Comissariado das Nações Unidas (Acnur) nesta terça-feira.
— Para centenas de milhares de mulheres, fugir de sua pátria em ruína é apenas a primeira etapa de uma difícil jornada — declarou o comissário Antonio Guterres.
Fome, isolamento e medo fazem parte do cotidiano dessas chefes de família que estão em Egito, Líbano, Iraque e Jordânia, desempenhando o papel mais difícil de suas vidas.
Intitulado “Mulher sozinha - a luta das refugiadas sírias para sobreviver”, o relatório traz 135 testemunhos recolhidos de fevereiro a abril de 2014. O objetivo do estudo é mostrar as dificuldades que essas mulheres, que se tornaram a cabeça da casa do dia para a noite, encontram no exílio. Obrigadas a assumir sozinhas as responsabilidades familiares depois que seus maridos morreram, foram sequestrados ou separados por outras razões, como fechamento das fronteiras ou visto negado, as sírias e seus filhos sofrem as consequências de uma guerra injusta.
A maior dificuldade relatada por elas é a falta de recursos para pagar aluguel, comprar comida e produtos de primeira necessidade. Muitas já acabaram com suas economias e venderam até a aliança de casamento. Somente um quinto delas tem um trabalho remunerado e na maioria das vezes é um emprego precário, mal pago, apenas de meio período. Elas contam com a generosidade de pessoas que as abrigam gratuitamente ou em mesquitas. Algumas enviam seus filhos para trabalhar e um quarto delas recebe ajuda financeira da agência da ONU para refugiados ou outras organizações humanitárias.
Confrontadas a uma luta diária e solitária para sobreviver, essas mulheres sofrem ameaças de violência e exploração, e estão vendo seus filhos crescerem rápido demais, tomando responsabilidades de adultos. Os meninos viraram “pequenos homens” ajudando suas mães financeiramente fazendo bicos ou até mesmo assumindo a proteção da família só por ser homem. As meninas são forçadas a cuidarem dos irmãos e assumir mais obrigações nas tarefas da casa.
Ahmed Bathoul, uma das pesquisadoras e responsáveis pelo relatório, entrevistou mulheres que estão refugiadas no Líbano.
— A vida delas mudou completamente do dia para a noite. Muitas dessas mulheres nunca trabalharam antes, tinham uma vida confortável, marido, a família e os amigos por perto, e agora elas tem que fazer tudo, ser o chefe da casa, pais, mãe, irmã — contou ao GLOBO.
Ahmed também identificou na sua pesquisa que os problemas financeiros são os que mais preocupam essas mulheres:
— A vida é muito cara no Líbano comparada com a Síria.
“NINGUÉM ME RESPEITA PORQUE NÃO ESTOU COM UM HOMEM"
Cerca de 60% das mulheres entrevistas contaram se sentir muito inseguras e têm medo até de sair de casa.
"Uma mulher sozinha no Egito é uma presa fácil para todos os homens", explicou Diala, que vive em Alexandria, no Egito, aos funcionários do Acnur.
Zahwa, que está na Jordânia, contou que foi perseguida por refugiados quando ia buscar cupons de alimentos.
“Eu vivia na dignidade, mas agora ninguém me respeita porque eu não estou com um homem”, disse.
O tema sobre violência sexual é um tabu muito grande para sociedades conservadoras como são as árabes, indica Ahmed.
— Elas preferem se isolar, não tocam no assunto, não denunciam.
Noor, que vive no Líbano, foi taxativa:
"Eu nunca pedirei ajuda a uma organização. Eu cuidarei das minhas feridas e ficarei silenciosa, mas nunca direi nada a ninguém."
CASAMENTO PRECOCE
Apesar de ser comum em países árabes que meninas se casem no começo da adolescência, inclusive em algumas regiões da Síria, o relatório não traz dados sobre noivado e casamento de adolescentes refugiadas.
Nota-se que o assunto da sexualidade foi tratado com cautela e sem insistência por parte dos pesquisadores. Imperou a lei do silêncio na pesquisa, principalmente na resposta das entrevistadas.
Para Ahmed, a família que escolhe casar uma adolescente refugiada está na realidade tentando protegê-la, já que terá um homem para cuidar dela.
— A Síria é um país muito mais conservador que o Líbano, muitas mães têm medo que elas se percam, façam bobagens diante da liberdade encontrada aqui. Eu entrevistei uma família que a filha de 14 anos estava noiva, mas o noivo também era um jovem.
UM NOVO LAR E ISOLAMENTO
Lina vive informalmente em uma tenda no Líbano há quase um ano. Ela tem sete filhos, três deles com psoríase, doença de pele e que devido à precariedade de higiene do novo lar agravou-se dramaticamente. Os remédios são caros, e Lina quase não tem o suficiente para comprar comida. Com a ajuda dos irmãos, ela construiu sua própria tenda. Ela não tem notícias do marido desde que ele foi preso na Síria ha dois anos.
Encontrar um lugar seguro para viver é a primeira dificuldade encontrada pela refugiadas. Muitas pessoas não querem alugar casas para elas já que não tem marido, e com poucos recursos elas acabam em moradias precárias ou bairros muito pobres onde sofrem preconceito, agressões verbais, o que as fazem sentir muito medo e se isolarem.
— O medo de serem agredidas sexualmente, verbalmente ou serem apontadas nas ruas fazem com que essas mulheres se isolem. Muitas nunca saem de casa — conta Ahmed.
INFRAESTRUTURA PARA ACOLHER REFUGIADOS
Outro grande problema é a falta de infraestrutura que esses países que acolhem os refugiados estão enfrentando. O Líbano, por exemplo, um país com 4 milhões de pessoas, já recebeu um milhão de sírios, o maior número de toda a região.
O Egito que passa também por muitos problemas políticos internos recebeu 137 mil refugiados e resolveu em 2013 fechar a fronteira para os sírios, o que tem separado muitas famílias.
Com isso, os países que os acolhem sofrem com falta de água E eletricidade. É um desafio também a saúde e a educação já que são regiões que normalmente tem um deficit grande no setor social, e consequentemente isso aumenta a tensão nas fronteiras.
Nos últimos três anos 2,8 milhões de pessoas fugiram da guerra civil na Síria. Quatro de cada cinco refugiados são mulheres e crianças. Segundo estimativas os refugiados sírios podem chegar a 3,6 milhões até o fim de 2014.
Nuha (nome fictício) de 45 anos chegou ao Cairo vindo de Aleppo, na Síria, com seu marido e seus três filhos pequenos. Eles fugiam da guerra, da fome e da morte. Nos primeiros meses na cidade o marido de Nuha trabalhou como motorista de tuc-tuc. Ele cuidava das finanças da família, das despesas, das compras no supermercado, enquanto Nuha era dona de casa, cuidava das crianças. Até que mais uma tragédia aconteceu na sua vida: seu marido foi assassinado no trabalho. "Eu não quero sair de casa por causa da tristeza que eu tenho no coração. Nós fugimos da morte na Síria e ela nos encontrou aqui, no Egito", disse.
A história triste de Nuha é apenas mais uma das muitas descritas no relatório da Agência da ONU para refugiados, divulgado nesta terça-feira, que traz a dura realidade enfrentada por 145 mil sírias que lutam sozinhas para cuidar de sua famílias, após terem sido obrigadas a deixarem seu país por causa da guerra civil que já dura há mais de três anos, mostra um relatório divulgado pelo Alto Comissariado das Nações Unidas (Acnur) nesta terça-feira.
— Para centenas de milhares de mulheres, fugir de sua pátria em ruína é apenas a primeira etapa de uma difícil jornada — declarou o comissário Antonio Guterres.
Fome, isolamento e medo fazem parte do cotidiano dessas chefes de família que estão em Egito, Líbano, Iraque e Jordânia, desempenhando o papel mais difícil de suas vidas.
Intitulado “Mulher sozinha - a luta das refugiadas sírias para sobreviver”, o relatório traz 135 testemunhos recolhidos de fevereiro a abril de 2014. O objetivo do estudo é mostrar as dificuldades que essas mulheres, que se tornaram a cabeça da casa do dia para a noite, encontram no exílio. Obrigadas a assumir sozinhas as responsabilidades familiares depois que seus maridos morreram, foram sequestrados ou separados por outras razões, como fechamento das fronteiras ou visto negado, as sírias e seus filhos sofrem as consequências de uma guerra injusta.
A maior dificuldade relatada por elas é a falta de recursos para pagar aluguel, comprar comida e produtos de primeira necessidade. Muitas já acabaram com suas economias e venderam até a aliança de casamento. Somente um quinto delas tem um trabalho remunerado e na maioria das vezes é um emprego precário, mal pago, apenas de meio período. Elas contam com a generosidade de pessoas que as abrigam gratuitamente ou em mesquitas. Algumas enviam seus filhos para trabalhar e um quarto delas recebe ajuda financeira da agência da ONU para refugiados ou outras organizações humanitárias.
Confrontadas a uma luta diária e solitária para sobreviver, essas mulheres sofrem ameaças de violência e exploração, e estão vendo seus filhos crescerem rápido demais, tomando responsabilidades de adultos. Os meninos viraram “pequenos homens” ajudando suas mães financeiramente fazendo bicos ou até mesmo assumindo a proteção da família só por ser homem. As meninas são forçadas a cuidarem dos irmãos e assumir mais obrigações nas tarefas da casa.
Ahmed Bathoul, uma das pesquisadoras e responsáveis pelo relatório, entrevistou mulheres que estão refugiadas no Líbano.
— A vida delas mudou completamente do dia para a noite. Muitas dessas mulheres nunca trabalharam antes, tinham uma vida confortável, marido, a família e os amigos por perto, e agora elas tem que fazer tudo, ser o chefe da casa, pais, mãe, irmã — contou ao GLOBO.
Ahmed também identificou na sua pesquisa que os problemas financeiros são os que mais preocupam essas mulheres:
— A vida é muito cara no Líbano comparada com a Síria.
“NINGUÉM ME RESPEITA PORQUE NÃO ESTOU COM UM HOMEM"
Cerca de 60% das mulheres entrevistas contaram se sentir muito inseguras e têm medo até de sair de casa.
"Uma mulher sozinha no Egito é uma presa fácil para todos os homens", explicou Diala, que vive em Alexandria, no Egito, aos funcionários do Acnur.
Zahwa, que está na Jordânia, contou que foi perseguida por refugiados quando ia buscar cupons de alimentos.
“Eu vivia na dignidade, mas agora ninguém me respeita porque eu não estou com um homem”, disse.
O tema sobre violência sexual é um tabu muito grande para sociedades conservadoras como são as árabes, indica Ahmed.
— Elas preferem se isolar, não tocam no assunto, não denunciam.
Noor, que vive no Líbano, foi taxativa:
"Eu nunca pedirei ajuda a uma organização. Eu cuidarei das minhas feridas e ficarei silenciosa, mas nunca direi nada a ninguém."
CASAMENTO PRECOCE
Apesar de ser comum em países árabes que meninas se casem no começo da adolescência, inclusive em algumas regiões da Síria, o relatório não traz dados sobre noivado e casamento de adolescentes refugiadas.
Nota-se que o assunto da sexualidade foi tratado com cautela e sem insistência por parte dos pesquisadores. Imperou a lei do silêncio na pesquisa, principalmente na resposta das entrevistadas.
Para Ahmed, a família que escolhe casar uma adolescente refugiada está na realidade tentando protegê-la, já que terá um homem para cuidar dela.
— A Síria é um país muito mais conservador que o Líbano, muitas mães têm medo que elas se percam, façam bobagens diante da liberdade encontrada aqui. Eu entrevistei uma família que a filha de 14 anos estava noiva, mas o noivo também era um jovem.
UM NOVO LAR E ISOLAMENTO
Lina vive informalmente em uma tenda no Líbano há quase um ano. Ela tem sete filhos, três deles com psoríase, doença de pele e que devido à precariedade de higiene do novo lar agravou-se dramaticamente. Os remédios são caros, e Lina quase não tem o suficiente para comprar comida. Com a ajuda dos irmãos, ela construiu sua própria tenda. Ela não tem notícias do marido desde que ele foi preso na Síria ha dois anos.
Encontrar um lugar seguro para viver é a primeira dificuldade encontrada pela refugiadas. Muitas pessoas não querem alugar casas para elas já que não tem marido, e com poucos recursos elas acabam em moradias precárias ou bairros muito pobres onde sofrem preconceito, agressões verbais, o que as fazem sentir muito medo e se isolarem.
— O medo de serem agredidas sexualmente, verbalmente ou serem apontadas nas ruas fazem com que essas mulheres se isolem. Muitas nunca saem de casa — conta Ahmed.
INFRAESTRUTURA PARA ACOLHER REFUGIADOS
Outro grande problema é a falta de infraestrutura que esses países que acolhem os refugiados estão enfrentando. O Líbano, por exemplo, um país com 4 milhões de pessoas, já recebeu um milhão de sírios, o maior número de toda a região.
O Egito que passa também por muitos problemas políticos internos recebeu 137 mil refugiados e resolveu em 2013 fechar a fronteira para os sírios, o que tem separado muitas famílias.
Com isso, os países que os acolhem sofrem com falta de água E eletricidade. É um desafio também a saúde e a educação já que são regiões que normalmente tem um deficit grande no setor social, e consequentemente isso aumenta a tensão nas fronteiras.
Nos últimos três anos 2,8 milhões de pessoas fugiram da guerra civil na Síria. Quatro de cada cinco refugiados são mulheres e crianças. Segundo estimativas os refugiados sírios podem chegar a 3,6 milhões até o fim de 2014.