O atraso na liberação de recursos públicos para pagamento à indústria de defesa, relativo a programas estratégicos em curso, preocupa empresários do setor
Cosme Degenar Drumond | Especial para DefesaNet
O planejamento estratégico é fundamental no processo de desenvolvimento de um país. Na lógica do desenvolvimento planejado, um modelo de defesa autônomo e eficiente é essencial para proteger os ideais, valores, cultura e patrimônio nacionais. A sociedade dita a política, a comunidade científica busca o conhecimento tecnológico, a indústria de defesa produz os equipamentos necessários e o Estado conduz o processo. É o que dizem os especialistas no assunto, que salientam a alta qualidade da formação educacional da sociedade como principal esteio na proteção da soberania nacional.
No Brasil, o fortalecimento da defesa sempre dependeu dos humores de cada governo. A Estratégia Nacional de Defesa, aprovada em 18 de dezembro de 2008, classificou a defesa nacional como instrumento do Estado, nada mais correto. Desde o reinado de D. João VI no Brasil (1808-1821) não se viu tamanha reorganização nessa área, iniciada com a criação do Ministério da Defesa em 1999. Não foi tarefa fácil consolidar o novo órgão na estrutura do Estado, primeira medida para erguer no país uma defesa dinâmica, moderna e autossuficiente.
Na ocasião, o nível de produtividade na indústria de defesa era crítico. As Forças Armadas estavam à beira da obsolescência material e dependiam praticamente do mercado externo para compra de equipamentos de emprego militar. Com a colaboração do Departamento da Indústria de Defesa (COMDEFESA) e da Associação Brasileira das Indústrias de Materiais de Defesa e Segurança (ABIMDE), o governo concebeu a nova política de defesa do país. Dois meses antes da aprovação da Estratégia Nacional de Defesa, o então secretário de Assuntos Estratégicos da Presidência da República Roberto Mangabeira Unger antecipou para os empresários na Fiesp algumas propostas de revitalização do setor produtivo, incluídas no plano governamental.
Cinco ideias centrais foram destacadas:
- A primeira previa a elaboração de estatuto, regime jurídico, regulatório e tributário especial, para resguardar as empresas contra pressões de curto prazo mercantil e assegurar a continuidade nas compras públicas, protegendo a produção do risco do contingenciamento orçamentário;
- A segunda, dizia que a indústria ligada ao Estado deveria operar “no teto tecnológico, não no chão tecnológico”, desenvolvendo o que o setor privado não pudesse produzir de modo rentável;
- A terceira abordava pesquisa e produção. Nesta parte, segundo o ministro, havia nas Forças Armadas unidades de pesquisa avançada que não tinham qualquer desfecho produtivo, as linhas de produção eram retrógradas e não orientadas por pesquisa avançada. “Não é isso o que queremos. Queremos manter vínculo próximo, uma ligação íntima entre pesquisa avançada e produção avançada”.
- A quarta ideia falava da parceria da indústria de defesa do Brasil com empresas do exterior, uma interação condicionada à contribuição efetiva que o setor estrangeiro pudesse dar às capacitações tecnológicas autônomas pretendidas. Para ilustrar esta parte, o secretário referiu-se à substituição da frota de caças de combate da Força Aérea Brasileira, cujos procedimentos iniciais estavam concluídos: “não podemos tolerar o perigoso hiato de desproteção aérea. Temos que substituir a frota de aviões de combate num intervalo temporal entre 2015 e 2025. Ao mesmo tempo, não podemos sacrificar o futuro ao presente”.
Mangabeira Unger tinha sido um crítico do governo petista. Entretanto, aceitara o convite do presidente Lula para compor a equipe que elaboraria o novo planejamento para a defesa. Mantendo o foco da palestra na questão F-X2, garantiu que o governo selecionaria a melhor contribuição para a independência tecnológica do país. Aventando a hipótese de o jato militar Gripen vir a ser o vencedor da licitação, usou o monorreator sueco como referência: “Digamos que [o Gripen] apresenta certas limitações técnicas, como raio de ação, tecnologia de baixa assinatura radar e capacidade para manobras radicais. Podemos propor ao parceiro estrangeiro fabricar no Brasil nova versão do avião. Assim, resolveríamos simultaneamente o problema das habilitações técnicas e o suscitado pelo desejo de não sacrificar o futuro ao presente, priorizando a capacitação tecnológica nacional”.
O Gripen incorpora componentes americanos. O ministro ressaltou essa parte: “não desejamos que a solução do nosso problema de hiato e de desproteção aérea nos coloque numa posição de dependência tecnológica em relação a uma potência que notoriamente resiste à transferência de tecnologia e usa as tecnologias ilimitadas para exercer influência política”.
Para comentar uma segunda hipótese, mencionou como exemplo outro avião que concorria ao F-X2: o bimotor Rafale francês. “Neste caso, não vamos propor nova versão, mas imaginemos que o estado francês se disponha a operar uma transferência irrestrita de tecnologia, inclusive os códigos-fonte, e que nossas empresas nos assegurem que com tais elementos sejam capazes na etapa subsequente de fabricar, sozinhas, os ganhos do avião. Ai haveria duas questões práticas: qual é o nível mínimo de compra que detonaria a transferência irrestrita de tecnologia e como podemos renegociar as cláusulas para organizar o mercado mundial em seguida, e assegurar nossa capacidade de fabricar um novo caça em futuro próximo, com base na posse das tecnologias transferidas? São apenas duas fórmulas. Mas, o que eu quero ilustrar é que há mais de uma maneira de resolver o problema e não sacrificar o futuro ao presente. Temos de considerar todas as alternativas, sem deixar de assegurar a prioridade da nossa capacitação e da nossa independência”.
A quinta e última ideia referia-se à política de compra do Estado. “Precisamos ter coordenação eficaz no Ministério de Defesa e não permitir um sistema descoordenado e descentralizado. Este é um requisito fundamental inclusive para que se possa assegurar a unidade da pesquisa e da produção e avançar no objetivo maior da Estratégia Nacional de Defesa, de construir uma cultura militar vanguardista voltada pelo ideal de flexibilidade. A indústria de defesa enfrenta um problema de escala, de deficiência e, portanto, de custo. Uma das razões, por sua própria natureza, é caracterizada por uma despadronização dos produtos e serviços mais avançados.
Este é um problema enfrentado até mesmo pelos EUA que atuam numa escala relativamente gigantesca em comparação com a escala em que teremos que atuar. E que, por isso, em muitos setores de sua produção, as empresas privadas precisam garantir o custo de operar o regime. Se nós vamos operar em escala menor por definição, vamos enfrentar o problema numa dimensão maior. É claro que podemos atenuá-lo pela conquista de uma clientela estrangeira. Porém, se a nossa concepção de indústria nacional de defesa é estratégica, não podemos depender dessa clientela; será preciso encontrar soluções inovadoras para o problema”.
Arrematando o assunto, falou que a Estratégia Nacional de Defesa não era a construção de um governo, mas a construção do Estado brasileiro. Previu críticas de formadores de opinião ao modelo de defesa proposto como desperdício de dinheiro ou instrumento de corrida armamentista, “natural, dadas as nossas características pacíficas”, frisou.
Para ele, as críticas, além de previsíveis, seriam úteis por propiciar ao país a dialética de esclarecimento. Finalizando, conclamou a assistência: “É importante que os industriais ajudem o governo na parte que tem a ver com a construção das ideias a respeito da indústria nacional de defesa para que a Estratégia Nacional de Defesa não seja vista no país como influenciada para os interesses materiais das empresas. Estamos tratando de uma estratégia que deve ser discutida com a maior sobriedade pela sociedade”.
A Estratégia Nacional de Defesa confirmou as ideias comentadas como diretrizes. O passo seguinte foi iniciar o fortalecimento do escudo protetor do país. Das metas previstas, três delas animaram o empresariado: retomar a busca pela autonomia tecnológica, interrompida no fim do século passado; equacionar a histórica insuficiência e descontinuidade de recursos orçamentários; e, aparelhar as Forças Armadas prioritariamente com produtos fabricados no Brasil. Nunca se discutiu tanto a defesa no Brasil como naquele período.
O governo pôs em prática ações adicionais pertinentes, fixou a data de 31 de março de 2009 como prazo final de apronto da “proposta de estabelecimento de ato legal que garanta a alocação, de forma continuada, de recursos financeiros específicos, para viabilizar o desenvolvimento integrado e a conclusão de projetos relacionados à defesa nacional”. Os empresários investiram em engenharia, laboratórios de pesquisa, fábricas e capital humano para ajustar a indústria ao novo modelo de defesa. O aparelhamento das Forças Armadas contaria com programas de alto conteúdo tecnológico. O país, rico em recursos naturais, não poderia deixar de proteger seu valioso patrimônio, sobretudo quando o mundo revelava novas ameaças. Falava-se inclusive em “guerra climática”, algo impensável até então.
Em 2012, o governo aprovou o Livro Branco de Defesa Nacional. O capítulo seis (pág. 218) do documento, por meio do qual a sociedade toma conhecimento das ações do Estado nessa área, proclama: “o orçamento da defesa contempla as prioridades definidas para as Forças Armadas. A gestão dos recursos destinados ao Exército, Marinha e Força Aérea é feita de forma individualizada. A cada ano, o orçamento militar deve atender os gastos planejados. O projeto de lei orçamentária anual estima receitas e autoriza despesas de maneira detalhada, em conformidade com a lei de diretrizes orçamentárias e o plano plurianual”.
No prefácio do Livro Branco, a presidente da República assinalou: “A elevação da estatura internacional do Brasil no século XXI já é uma realidade. O Brasil plenamente desenvolvido e com presença externa cada vez maior necessitará de adequada capacidade militar dissuasória. Empenhado na construção de uma ordem global mais pacífica e próspera, o Brasil não pode descuidar da Defesa”.
No dia 20 de maio passado, na fábrica da Embraer de Gavião Peixoto (SP), ao inaugurar a linha de montagem do KC-390, primeiro jato militar de transporte tático brasileiro, a presidente exaltou os avanços tecnológicos e os empregos atrelados ao desenvolvimento e à produção do cargueiro.“Ninguém em sã consciência pode duvidar que a indústria da defesa é estratégica. Muitos concordarão que tem potencial extraordinário para o desenvolvimento tecnológico. São razões suficientes de orgulho do que fizemos aqui, mas acredito que tem outra razão para celebrar esse programa que, a meu ver, é importante: a quantidade de empregos diretos e indiretos previstos. (…) Vamos produzir aviões e desenvolvimento, com mais empregos, melhores empregos, mais renda e mais oportunidades para brasileiros e brasileiras que participam dessa área de atividade no Brasil”.
Problema de percurso
O Brasil comprometeu-se em valorizar a defesa. A reorganização do setor de defesa atraiu multinacionais do setor interessadas em firmar parcerias com a indústria brasileira. Agências do governo abriram linhas de crédito para realavancar o parque nacional de defesa. Grupos de empresas de defesa passaram a ser patrocinados com recursos públicos em eventos internacionais do setor, no sentido de manter contatos com potenciais parceiros e promover seus produtos. O novo planejamento estratégico caminhava bem. Notava-se a aura de otimismo na indústria setorial brasileira.
Mas, após dar um salto espetacular de crescimento do PIB, a economia nacional passou a exibir índices de evolução baixos. Em 2013, as previsões indicavam que o ano da Copa no Brasil seria de desafios para a economia do país. Autoridades militares cantaram essa bola na defesa. No primeiro trimestre de 2014, surgiu um problema de caixa para a indústria: o desembolso de verbas públicas para remunerar os programas estratégicos atrasou. O governo equacionou parte do problema. Algumas companhias, porém, ficaram para depois e se enroscaram mais, logo na primeira etapa da readequação industrial; as pequenas e médias empresas, principalmente, ainda não têm condições de andar com as próprias pernas e dependem unicamente das demandas do Estado.
Fontes da indústria dizem a causa do descompasso orçamentário foi “disfunção passageira”. Outras acreditam que é “falta de investir o orçamento nos lugares certos, mais do que propriamente insuficiência de recursos”. Seja como for, a situação não é pontual. A produção industrial brasileira apresentou fraco desempenho no primeiro trimestre de 2014, sofrendo contração de 0,5% em março, segundo recente pesquisa do IBGE. O contrapasso no orçamento resvalou inclusive no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). A defesa tem programas estratégicos incluídos no PAC.
Resumindo: são milhões de reais em créditos não recebidos pela indústria. Por outro lado, os programas em curso têm prazo certo de conclusão. A empresa que atrasar o cronograma é penalizada por regras contratuais. Além disso, o sindicato dos trabalhadores não quer saber a causa de diminuição no número de empregados e são os “primeiros a fazer barulho nas portas das fábricas”, ressalta uma das fontes ouvidas. Fornecedores de peças e componentes da indústria têm recebidos sua parte, mas as contratantes sabem o esforço que fizeram para colocar as contas em dia.
O Ministério da Defesa e as Forças Armadas conduzem os programas, mas não têm a chave do Tesouro. A busca pela capacitação da indústria é de longo prazo, precisa se desenvolver sem sofrer impacto negativo. É fundamental o incentivo à exportação no setor, apoiada por mecanismo financeiro mais ágil e menos burocrático, para estimular o crescimento da indústria e evitar que o setor dependa unicamente do mercado interno.
A indústria de defesa conquistou avanços significativos nos últimos anos, fruto da sinergia governo-indústria. O Brasil amadureceu seu pensamento político. Entretanto, as empresas que ficaram para depois não têm como suportar por muito tempo. Uma luz está se acendendo: representantes dos Ministérios da Defesa e da Fazenda (orçamentação) visitarão fábricas da indústria de defesa de São José dos Campos (SP), com o mote de avaliar, discutir e buscar a solução para colocar o pagamento de empenhos públicos em dia, o mais urgente possível.
Enfim, este não é o primeiro descompasso que ocorre no orçamento. O mais antigo remonta ao período em que D. João VI reorganizou o Estado brasileiro. Para solucionar a falta de recursos, o soberano recorreu à ajuda do capital privado em troca de favores do Estado. Os tempos são outros. Hoje, antes de contratar os programas, o Estado disponibiliza recursos e prioriza a produção nativa.
Notas:
- As fontes consultadas concordaram em falar sobre o assunto desde que seus nomes, por razões óbvias, fossem mantidos no anonimato.
No Brasil, o fortalecimento da defesa sempre dependeu dos humores de cada governo. A Estratégia Nacional de Defesa, aprovada em 18 de dezembro de 2008, classificou a defesa nacional como instrumento do Estado, nada mais correto. Desde o reinado de D. João VI no Brasil (1808-1821) não se viu tamanha reorganização nessa área, iniciada com a criação do Ministério da Defesa em 1999. Não foi tarefa fácil consolidar o novo órgão na estrutura do Estado, primeira medida para erguer no país uma defesa dinâmica, moderna e autossuficiente.
Na ocasião, o nível de produtividade na indústria de defesa era crítico. As Forças Armadas estavam à beira da obsolescência material e dependiam praticamente do mercado externo para compra de equipamentos de emprego militar. Com a colaboração do Departamento da Indústria de Defesa (COMDEFESA) e da Associação Brasileira das Indústrias de Materiais de Defesa e Segurança (ABIMDE), o governo concebeu a nova política de defesa do país. Dois meses antes da aprovação da Estratégia Nacional de Defesa, o então secretário de Assuntos Estratégicos da Presidência da República Roberto Mangabeira Unger antecipou para os empresários na Fiesp algumas propostas de revitalização do setor produtivo, incluídas no plano governamental.
Cinco ideias centrais foram destacadas:
- A primeira previa a elaboração de estatuto, regime jurídico, regulatório e tributário especial, para resguardar as empresas contra pressões de curto prazo mercantil e assegurar a continuidade nas compras públicas, protegendo a produção do risco do contingenciamento orçamentário;
- A segunda, dizia que a indústria ligada ao Estado deveria operar “no teto tecnológico, não no chão tecnológico”, desenvolvendo o que o setor privado não pudesse produzir de modo rentável;
- A terceira abordava pesquisa e produção. Nesta parte, segundo o ministro, havia nas Forças Armadas unidades de pesquisa avançada que não tinham qualquer desfecho produtivo, as linhas de produção eram retrógradas e não orientadas por pesquisa avançada. “Não é isso o que queremos. Queremos manter vínculo próximo, uma ligação íntima entre pesquisa avançada e produção avançada”.
- A quarta ideia falava da parceria da indústria de defesa do Brasil com empresas do exterior, uma interação condicionada à contribuição efetiva que o setor estrangeiro pudesse dar às capacitações tecnológicas autônomas pretendidas. Para ilustrar esta parte, o secretário referiu-se à substituição da frota de caças de combate da Força Aérea Brasileira, cujos procedimentos iniciais estavam concluídos: “não podemos tolerar o perigoso hiato de desproteção aérea. Temos que substituir a frota de aviões de combate num intervalo temporal entre 2015 e 2025. Ao mesmo tempo, não podemos sacrificar o futuro ao presente”.
Mangabeira Unger tinha sido um crítico do governo petista. Entretanto, aceitara o convite do presidente Lula para compor a equipe que elaboraria o novo planejamento para a defesa. Mantendo o foco da palestra na questão F-X2, garantiu que o governo selecionaria a melhor contribuição para a independência tecnológica do país. Aventando a hipótese de o jato militar Gripen vir a ser o vencedor da licitação, usou o monorreator sueco como referência: “Digamos que [o Gripen] apresenta certas limitações técnicas, como raio de ação, tecnologia de baixa assinatura radar e capacidade para manobras radicais. Podemos propor ao parceiro estrangeiro fabricar no Brasil nova versão do avião. Assim, resolveríamos simultaneamente o problema das habilitações técnicas e o suscitado pelo desejo de não sacrificar o futuro ao presente, priorizando a capacitação tecnológica nacional”.
O Gripen incorpora componentes americanos. O ministro ressaltou essa parte: “não desejamos que a solução do nosso problema de hiato e de desproteção aérea nos coloque numa posição de dependência tecnológica em relação a uma potência que notoriamente resiste à transferência de tecnologia e usa as tecnologias ilimitadas para exercer influência política”.
Para comentar uma segunda hipótese, mencionou como exemplo outro avião que concorria ao F-X2: o bimotor Rafale francês. “Neste caso, não vamos propor nova versão, mas imaginemos que o estado francês se disponha a operar uma transferência irrestrita de tecnologia, inclusive os códigos-fonte, e que nossas empresas nos assegurem que com tais elementos sejam capazes na etapa subsequente de fabricar, sozinhas, os ganhos do avião. Ai haveria duas questões práticas: qual é o nível mínimo de compra que detonaria a transferência irrestrita de tecnologia e como podemos renegociar as cláusulas para organizar o mercado mundial em seguida, e assegurar nossa capacidade de fabricar um novo caça em futuro próximo, com base na posse das tecnologias transferidas? São apenas duas fórmulas. Mas, o que eu quero ilustrar é que há mais de uma maneira de resolver o problema e não sacrificar o futuro ao presente. Temos de considerar todas as alternativas, sem deixar de assegurar a prioridade da nossa capacitação e da nossa independência”.
A quinta e última ideia referia-se à política de compra do Estado. “Precisamos ter coordenação eficaz no Ministério de Defesa e não permitir um sistema descoordenado e descentralizado. Este é um requisito fundamental inclusive para que se possa assegurar a unidade da pesquisa e da produção e avançar no objetivo maior da Estratégia Nacional de Defesa, de construir uma cultura militar vanguardista voltada pelo ideal de flexibilidade. A indústria de defesa enfrenta um problema de escala, de deficiência e, portanto, de custo. Uma das razões, por sua própria natureza, é caracterizada por uma despadronização dos produtos e serviços mais avançados.
Este é um problema enfrentado até mesmo pelos EUA que atuam numa escala relativamente gigantesca em comparação com a escala em que teremos que atuar. E que, por isso, em muitos setores de sua produção, as empresas privadas precisam garantir o custo de operar o regime. Se nós vamos operar em escala menor por definição, vamos enfrentar o problema numa dimensão maior. É claro que podemos atenuá-lo pela conquista de uma clientela estrangeira. Porém, se a nossa concepção de indústria nacional de defesa é estratégica, não podemos depender dessa clientela; será preciso encontrar soluções inovadoras para o problema”.
Arrematando o assunto, falou que a Estratégia Nacional de Defesa não era a construção de um governo, mas a construção do Estado brasileiro. Previu críticas de formadores de opinião ao modelo de defesa proposto como desperdício de dinheiro ou instrumento de corrida armamentista, “natural, dadas as nossas características pacíficas”, frisou.
Para ele, as críticas, além de previsíveis, seriam úteis por propiciar ao país a dialética de esclarecimento. Finalizando, conclamou a assistência: “É importante que os industriais ajudem o governo na parte que tem a ver com a construção das ideias a respeito da indústria nacional de defesa para que a Estratégia Nacional de Defesa não seja vista no país como influenciada para os interesses materiais das empresas. Estamos tratando de uma estratégia que deve ser discutida com a maior sobriedade pela sociedade”.
A Estratégia Nacional de Defesa confirmou as ideias comentadas como diretrizes. O passo seguinte foi iniciar o fortalecimento do escudo protetor do país. Das metas previstas, três delas animaram o empresariado: retomar a busca pela autonomia tecnológica, interrompida no fim do século passado; equacionar a histórica insuficiência e descontinuidade de recursos orçamentários; e, aparelhar as Forças Armadas prioritariamente com produtos fabricados no Brasil. Nunca se discutiu tanto a defesa no Brasil como naquele período.
O governo pôs em prática ações adicionais pertinentes, fixou a data de 31 de março de 2009 como prazo final de apronto da “proposta de estabelecimento de ato legal que garanta a alocação, de forma continuada, de recursos financeiros específicos, para viabilizar o desenvolvimento integrado e a conclusão de projetos relacionados à defesa nacional”. Os empresários investiram em engenharia, laboratórios de pesquisa, fábricas e capital humano para ajustar a indústria ao novo modelo de defesa. O aparelhamento das Forças Armadas contaria com programas de alto conteúdo tecnológico. O país, rico em recursos naturais, não poderia deixar de proteger seu valioso patrimônio, sobretudo quando o mundo revelava novas ameaças. Falava-se inclusive em “guerra climática”, algo impensável até então.
Em 2012, o governo aprovou o Livro Branco de Defesa Nacional. O capítulo seis (pág. 218) do documento, por meio do qual a sociedade toma conhecimento das ações do Estado nessa área, proclama: “o orçamento da defesa contempla as prioridades definidas para as Forças Armadas. A gestão dos recursos destinados ao Exército, Marinha e Força Aérea é feita de forma individualizada. A cada ano, o orçamento militar deve atender os gastos planejados. O projeto de lei orçamentária anual estima receitas e autoriza despesas de maneira detalhada, em conformidade com a lei de diretrizes orçamentárias e o plano plurianual”.
No prefácio do Livro Branco, a presidente da República assinalou: “A elevação da estatura internacional do Brasil no século XXI já é uma realidade. O Brasil plenamente desenvolvido e com presença externa cada vez maior necessitará de adequada capacidade militar dissuasória. Empenhado na construção de uma ordem global mais pacífica e próspera, o Brasil não pode descuidar da Defesa”.
No dia 20 de maio passado, na fábrica da Embraer de Gavião Peixoto (SP), ao inaugurar a linha de montagem do KC-390, primeiro jato militar de transporte tático brasileiro, a presidente exaltou os avanços tecnológicos e os empregos atrelados ao desenvolvimento e à produção do cargueiro.“Ninguém em sã consciência pode duvidar que a indústria da defesa é estratégica. Muitos concordarão que tem potencial extraordinário para o desenvolvimento tecnológico. São razões suficientes de orgulho do que fizemos aqui, mas acredito que tem outra razão para celebrar esse programa que, a meu ver, é importante: a quantidade de empregos diretos e indiretos previstos. (…) Vamos produzir aviões e desenvolvimento, com mais empregos, melhores empregos, mais renda e mais oportunidades para brasileiros e brasileiras que participam dessa área de atividade no Brasil”.
Problema de percurso
O Brasil comprometeu-se em valorizar a defesa. A reorganização do setor de defesa atraiu multinacionais do setor interessadas em firmar parcerias com a indústria brasileira. Agências do governo abriram linhas de crédito para realavancar o parque nacional de defesa. Grupos de empresas de defesa passaram a ser patrocinados com recursos públicos em eventos internacionais do setor, no sentido de manter contatos com potenciais parceiros e promover seus produtos. O novo planejamento estratégico caminhava bem. Notava-se a aura de otimismo na indústria setorial brasileira.
Mas, após dar um salto espetacular de crescimento do PIB, a economia nacional passou a exibir índices de evolução baixos. Em 2013, as previsões indicavam que o ano da Copa no Brasil seria de desafios para a economia do país. Autoridades militares cantaram essa bola na defesa. No primeiro trimestre de 2014, surgiu um problema de caixa para a indústria: o desembolso de verbas públicas para remunerar os programas estratégicos atrasou. O governo equacionou parte do problema. Algumas companhias, porém, ficaram para depois e se enroscaram mais, logo na primeira etapa da readequação industrial; as pequenas e médias empresas, principalmente, ainda não têm condições de andar com as próprias pernas e dependem unicamente das demandas do Estado.
Fontes da indústria dizem a causa do descompasso orçamentário foi “disfunção passageira”. Outras acreditam que é “falta de investir o orçamento nos lugares certos, mais do que propriamente insuficiência de recursos”. Seja como for, a situação não é pontual. A produção industrial brasileira apresentou fraco desempenho no primeiro trimestre de 2014, sofrendo contração de 0,5% em março, segundo recente pesquisa do IBGE. O contrapasso no orçamento resvalou inclusive no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). A defesa tem programas estratégicos incluídos no PAC.
Resumindo: são milhões de reais em créditos não recebidos pela indústria. Por outro lado, os programas em curso têm prazo certo de conclusão. A empresa que atrasar o cronograma é penalizada por regras contratuais. Além disso, o sindicato dos trabalhadores não quer saber a causa de diminuição no número de empregados e são os “primeiros a fazer barulho nas portas das fábricas”, ressalta uma das fontes ouvidas. Fornecedores de peças e componentes da indústria têm recebidos sua parte, mas as contratantes sabem o esforço que fizeram para colocar as contas em dia.
O Ministério da Defesa e as Forças Armadas conduzem os programas, mas não têm a chave do Tesouro. A busca pela capacitação da indústria é de longo prazo, precisa se desenvolver sem sofrer impacto negativo. É fundamental o incentivo à exportação no setor, apoiada por mecanismo financeiro mais ágil e menos burocrático, para estimular o crescimento da indústria e evitar que o setor dependa unicamente do mercado interno.
A indústria de defesa conquistou avanços significativos nos últimos anos, fruto da sinergia governo-indústria. O Brasil amadureceu seu pensamento político. Entretanto, as empresas que ficaram para depois não têm como suportar por muito tempo. Uma luz está se acendendo: representantes dos Ministérios da Defesa e da Fazenda (orçamentação) visitarão fábricas da indústria de defesa de São José dos Campos (SP), com o mote de avaliar, discutir e buscar a solução para colocar o pagamento de empenhos públicos em dia, o mais urgente possível.
Enfim, este não é o primeiro descompasso que ocorre no orçamento. O mais antigo remonta ao período em que D. João VI reorganizou o Estado brasileiro. Para solucionar a falta de recursos, o soberano recorreu à ajuda do capital privado em troca de favores do Estado. Os tempos são outros. Hoje, antes de contratar os programas, o Estado disponibiliza recursos e prioriza a produção nativa.
Notas:
- As fontes consultadas concordaram em falar sobre o assunto desde que seus nomes, por razões óbvias, fossem mantidos no anonimato.
- No dia 29 de maio, foi enviada à Assessoria de Imprensa do Ministério da Defesa mensagem pedindo esclarecimentos sobre o atraso no pagamento à indústria de defesa, suas causas e soluções. Uma secretária do departamento informou que até a data-limite para a resposta o responsável pelo setor se manifestaria a respeito. Contudo, até a publicação deste artigo, nem o autor do artigo nem o DefesaNet recebeu qualquer resposta.
Na solenidade de entrega do primeiro H-XBR produzido totalmente no Brasil, sexta-feira, 13 Junho 2014, na HELIBRAS, em Itajubá (MG), o Comandante da Marinha, Almirante-de-Esquadra Moura Neto informou que uma delegação do MD e MF visitarão as principais empresas de defesa, iniciando na segunda-feira (16 Junho 2014).
A comissão liderada pelo Secretário-Geral do MD Dr Ari Matos Cardoso, começará a visita pela EMBRAER, São José dos Campos, na segunda-feira.
O Editor