O que estamos vendo acontecer ante nossos olhos é o fim de um sistema internacional e o surgimento de outro, qualitativamente diferente.
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Interessante: Putin disse que, para ele, o ponto de não retorno foi ultrapassado quando os EUA e aliados no Conselho de Segurança da ONU e a OTAN, aberta e grosseiramente, distorceram a intenção do CS sobre a Líbia, e "ampliaram", o que deveria ter sido uma "zona aérea de exclusão", convertendo-a em "zona de tiro-livre" para atacar e bombardear a Líbia [claro que Putin via com perfeita clareza que a parte da Resolução em que se lia "todos os meios necessários para proteger civis" era convite descarado para que os anglo-sionistas "interpretassem" a Resolução como quisessem. Agora, Putin diz que "mentiram à Rússia", para não culpar Medvedev por ter metido o pé num buraco muito fundo. Mas, aqui, isso não é relevante].
Putin disse que, dali em diante, convenceu-se de que não é possível negociar com o Ocidente; que, simplesmente, dali em diante tratar-se-ia de deter o Ocidente. Então, aconteceu a Síria: pela primeira vez desde o fim da 2a. Guerra Mundial, os EUA decidiram fazer algo e foram impedidos por potência externa e do modo mais humilhante possível.
A atuação dos russos no caso da Síria foi desafio direto à hegemonia mundial dos EUA. Foi entendida assim, claramente, em Washington; e agora, depois da crise na Ucrânia, os russos já admitiram tudo, abertamente.
Assim sendo, eis o que realmente está em jogo na guerra civil na Ucrânia: para os EUA, se trata de punir a Rússia por ter-se atrevido a desafiar hegemonia mundial dos EUA; para a Rússia, se trata de deslocar essa hegemonia e substituí-la por um sistema internacional multipolar, no qual estados soberanos agem no limite da lei internacional.
Pode-se dizer que, apesar de até a maioria do Conselho de Segurança ter-se oposto veementemente, a Rússia está tentando mostrar ao mundo que os EUA não são donos da ONU; que só representam 1/5 do P5; e são só 1/15 avos do Conselho de Segurança da ONU.
O Ocidente acocorou-se em posição de total submissão aos EUA e às suas ferramentas de dominação sobre a Europa: a União Europeia e a OTAN. Europeus da Europa Central até se ofereceram voluntariamente para virar protetorado dos EUA, território à disposição para instalar sistemas de mísseis e prisões secretas da CIA.
Com exceção do Irã e da Síria, o mundo árabe e muçulmano deixou-se vender em liquidação, uns para os EUA, outros para a Arábia Saudita, quase tudo ao mesmo tempo. A América Latina esforça-se muito, mas ainda depende pesadamente dos EUA; e a África só tenta sobreviver como possa.
Quanto à Ásia, algumas partes estão entregues, como a Europa (Japão, Coreia); outros estão tentando manter perfil discreto; e a China está silenciosamente apoiando a Rússia, mas de modo externamente não declarado - apesar de a China ser o país que mais tem a ganhar, dentre todos do planeta, com uma mudança na ordem internacional.
Os russos teriam preferido esperar, ganhar tempo. Mas a decisão dos EUA, de castigá-los pela ousadia de ter-se oposto a eles na Síria, literalmente forçou os russos escolher entre ou render-se e encolher-se, ou aceitar abertamente o desafio norte-americano e fincar pé.
Repito aqui mais uma vez e quantas mais precisar repetir - Putin não teria outra escolha possível.
E agora, com tudo isso já exposto, podem todos ter certeza absoluta de que a Rússia não está nesse jogo para voltar ao status quo ante. Com incrível sinceridade e franqueza, ambos, Putin e Lavrov, declararam abertamente o objetivo do que fazem. E declararam pela televisão russa (Lavrov, no programa "Domingo à Noite com Vladimir Soloviev"; e Putin, na longa sessão (quase quatro horas) de entrevista ao vivo pela televisão, ontem).
Então, esse é o objetivo dos russos: desalojar os EUA do papel de hegemon mundial. E esse objetivo implica esforço muito mais longo, sustentado e maior do que apenas forçar os doidos de Kiev a sentar à mesa de negociações.
Dentre outras coisas, esse objetivo implica que a Rússia tem de:
1) Forçar os europeus a perceber o preço escandaloso que estão pagando por serem vassalos obedientes e calados dos EUA; e lentamente meter uma cunha entre EUA e Europa.
2) Forçar os EUA a admitir que não têm a força militar necessária para castigar nem - e ainda menos - "mudar regime" de todos que não agradem aos EUA.
3) Encorajar China e outras potências asiáticas a alinharem-se abertamente ao lado da Rússia, exigindo que o Ocidente se submeta à lei internacional.
4) Gradualmente substituir o dólar por outras moedas no comércio internacional e assim desacelerar o ritmo no qual o resto do planeta continua a financiar a dívida dos EUA.
5) Criar condições para que América Latina e África consigam fazer escolhas sobre o próprio futuro e substituir o atual monopólio que favorece o Ocidente, no que tenha a ver com definir os termos das relações Norte-Sul.
6) Apresentar outro modelo civilizacional que rejeita declaradamente o atual paradigma ocidental de sociedade comandada por elites pequenas e arrogantes.
7) Desafiar a atual ordem econômica liberal e capitalista corporificada no Consenso de Washington e substituí-la por um modelo de solidariedade social e internacional (quem queira, pode chamar de "socialismo do século 21").
Todos os itens acima podem ser sintetizados numa palavra: re-soberanização.
Desde que foi eleito, Putin mencionou várias vezes a necessidade de re-soberanizar a Rússia. A crise ucraniana forçou-o a revelar o objetivo final real de sua agenda: re-soberanizar todo o planeta.
É plano de ordem muito alta e exigirá muitos anos, possivelmente décadas, até atingir o objetivo, embora eu, pessoalmente, sinta cada dia mais que a total incompetência e a infinita arrogância dos plutocratas -1% que governam o mundo ocidental continuarão a acelerar esse processo.
A grande pergunta agora é:
- o Império Anglo-Sionista pode seguir o exemplo do Império Soviético e deixar-se desmontar sem, para que isso aconteça, disparar massacre massivo e vastos banhos de sangue, enquanto despenca do alto abaixo?
Claro que haverá violência, como também houve na extinta União Soviética. Mas se apenas conseguirmos evitar uma conflagração global ou, até, guerra em grande escala, já se poderá considerar bem-sucedida a empreitada, porque é quando os impérios estão desabando que eles se tornam mais imprevisíveis e mais perigosos.