Promoção pessoal do líder soviético Nikita Khruschov há 60 anos lançou as bases para crise atual.
Aleksandr Korolkov, especial para Gazeta Russa
É difícil imaginar que a Crimeia, atual motivo de discordância entre a Rússia e as novas autoridades ucranianas e o Ocidente, foi um “presente de irmão” do povo russo aos vizinhos ucranianos há apenas 60 anos, quando era celebrado o 300º aniversário da unificação da Rússia com a parte oriental da Ucrânia. O gesto simbólico tinha com intenção fortalecer a parceria, a economia e o peso político do então novo secretário-geral Nikita Khruschov.
Ao longo de sua história, a Crimeia esteve sob a esfera de influência do Império Romano Oriental, canato de Khazar, Império Mongol e Império Otomano, até que, 1783, foi anexado ao Império Russo. O último, contudo, permaneceu uma formação monolítica até 1917, quando, após a revolução, foi dividido em repúblicas soviéticas formalmente independentes e autônomas, entre as quais a Crimeia. Como resultado dos tumultos revolucionários na península, a região se manteve parte da Rússia, recebendo o nome de República Socialista Federativa Soviética da Rússia (RSFSR).
Imediatamente após chegar ao poder, Khruschov, que por muitos anos chefiou o Partido Comunista da Ucrânia, decidiu fazer um gesto simbólico e garantir um forte apoio pessoal na esfera de poder ucraniana: em uma das reuniões sobre agricultura realizada no Kremlin, ofereceu a Crimeia à Ucrânia.
Em meio a opiniões contrastantes sobre a decisão, o argumento apresentado por Khruschov coincidiu com aqueles apresentados mais tarde na reunião do Presidium do Soviete Supremo da RSFSR, em fevereiro de 1954, pelos “inflamados oradores” Mikhail Tarassov e Otto Kuusinen. Em primeiro lugar, a Crimeia está mais perto da Ucrânia e, com a nova configuração, seria mais fácil de governar a partir de Kiev. Por fim, qual era a diferença pertencer à Ucrânia ou à Rússia se era tudo o mesmo Estado?
Na época, a população da Crimeia não se opôs à iniciativa de transferência pelas mesmas razões que os políticos. Muitos locais não tinham sequer ideia do que havia acontecido até se depararem com placas escritas em ucraniano pela rua. Sessenta anos depois da data de transferência da Crimeia, o debate sobre a legalidade da decisão veio finalmente à tona.
Juristas e historiadores voltaram então a vasculhar as bases legais que fundamentaram a decisão do poder soviético e constataram que o acordo obrigatório para tal estava previsto no Artigo 16º da Constituição da RSFSR de 1937 e no Artigo 18º da Constituição de 1936 da URSS. O consentimento havia sido elaborado por parte de ambas as repúblicas como uma decisão de seus governos.
No entanto, o Artigo 33º da Constituição da RSFSR, que continha a lista de poderes do Presidium do Soviete Supremo da RSFSR, não previa o poder para alterar as fronteiras físicas da Federação Russa, mas dava-lhe autoridade para organizar um referendo sobre a questão – o que, na época, não aconteceu na Crimeia nem na RSFSR.
Sevastopol em fatos
Ainda mais difícil foi a questão do estatuto de Sevastopol, que desde os tempos do tsar era reconhecida como uma cidade-fortaleza, ou seja, possuía o estatuto de entidade autônoma. Em 1978, de acordo com a nova Constituição da República Soviética Ucraniana, Sevastopol, assim como Kiev, se tornou um centro republicano subordinado ao governo ucraniano -- estatuto que nem a população nem as autoridades regionais reconhecem até hoje. Paralelamente, a ordem do Presidium do Soviete Supremo da RSFSR sobre "o isolamento da cidade de Sevastopol como centro administrativo-econômico independente", assinada em outubro de 1948, não foi alterada ou sequer cancelada. Por esse motivo, em 1994, o Conselho da Cidade chegou até a aprovar a adesão de Sevastopol à Rússia.