Presidente russo discursou na terça-feira (18) no Parlamento.
Ele disse que a Crimeia 'sempre foi e sempre será parte da Rússia'.
Do G1, em São Paulo
Na última terça-feira, dia 18, o presidente russo, Vladimir Putin, fez no Kremlin um pronunciamento aos representantes da Duma Estatal e membros do Conselho Federal, líderes de regiões russas e representantes da sociedade civil. O presidente disse que o referendo realizado na região ucraniana da Crimeia foi feito de acordo com os procedimentos democráticos e com a lei internacional, e que a Crimeia "sempre foi e sempre será parte da Rússia".
O discurso foi seguido de uma lei que permitiu a anexação da Crimeia, região ucraniana de maioria russa.
Leia abaixo a íntegra da fala de Putin no Kremlin:
"Membros do Conselho Federal, representantes da Duma Estatal, boa tarde. Representantes da República da Crimeia e Sevastopol estão aqui conosco, cidadãos da Rússia, residentes da Crimea e de Sevastopol!
Caros amigos, o motivo de estarmos reunidos aqui hoje tem a ver com um assunto de importância vital e histórica para todos nós. Realizou-se um referendo na Crimeia em 16 de março em pleno cumprimento dos procedimentos democráticos e normas internacionais.
Mais de 82% do eleitorado participou da votação. Mais de 96% dos eleitores se posicionaram a favor da reunificação com a Rússia. Os números falam por si mesmos.
Para compreender as razões por trás de tal escolha, basta conhecer a história da Crimeia e o que a Rússia e a Crimeia sempre significaram uma para a outra.
Tudo na Crimeia fala da nossa história e orgulhos compartilhados. Essa é a região dos antigos Khersones, onde o príncipe Vladimir foi batizado. Seu feito espiritual de adotar a ortodoxia pré-determinou a base geral da cultura, civilização e dos valores humanos que unem os povos da Rússia, Ucrânia e Bielorrússia. As sepulturas dos soldados russos cuja valentia levou a Crimeia para o império russo também estão na Crimeia. Assim é também Sevastopol – uma cidade lendária com uma história extraordinária, uma fortaleza que serve como ponto da Frota do Mar Negro da Rússia. A Crimeia é Balaklava e Kerch, Malakhov Kurgan e Sapun Ridge. Cada um desses locais nos é querido, símbolos da glória militar e da notável coragem russas.
A Crimeia é uma fusão ímpar de culturas e tradições de diferentes povos. Isso a torna semelhante à Rússia como um todo, onde nenhum grupo étnico foi perdido ao longo dos séculos. Russos e ucranianos, crimeios e tártaros e povos de outros grupos étnicos conviveram na Crimeia, preservando a própria identidade, as tradições, idiomas e crenças.
Curiosamente, a atual população total da península da Crimeia é de 2,2 milhões de pessoas, das quais cerca de 1,5 milhão são russos, 350 mil são ucranianos que consideram o russo predominantemente como idioma nativo e cerca de 290 mil a 300 mil são tártaros da Crimeia que, como mostrou o referendo, inclinam-se a favor da Rússia.
É bem verdade que houve um tempo em que os tártaros da Crimeia foram tratados injustamente, assim como outros povos da URSS. Quanto a isso, há apenas uma coisa a dizer: milhões de pessoas de diversas etnias sofreram durante aquelas repressões, sobretudo os russos.
Os tártaros da Crimeia retornaram à terra natal. Creio que devemos tomar todas as decisões políticas e legislativas necessárias para concluir a reabilitação dos tártaros da Crimeia, restaurá-los em seus direitos e limpar sua boa reputação.
Temos respeito por todos os povos de todos os grupos étnicos que vivem na Crimeia. Trata-se de seu lar comum, sua terra natal, e seria correto – sei que a população local apoia isso – para a Crimeia ter três idiomas nacionais: russo, ucraniano e tártaro.
Colegas, na mente e no coração do povo, a Crimeia sempre foi uma porção inseparável da Rússia. Essa firme convicção se baseia na verdade e na justiça e foi passada de geração em geração, ao longo do tempo, sob quaisquer circunstâncias, apesar de todas as drásticas mudanças que nosso país atravessou durante todo o século XX.
Após a revolução, os bolcheviques, por diversos motivos – que Deus os julgue – agregaram grandes partes do histórico sul da Rússia à República da Ucrânia. Isso foi feito sem nenhuma consideração pela restauração étnica da população e atualmente essas áreas compõem o sudeste da Ucrânia. Em seguida, em 1954, foi tomada a decisão de transferir a região da Crimeia para a Ucrânia, junto com Sevastopol, embora fosse uma cidade federal. Essa foi a iniciativa pessoal do líder do Partido Comunista, Nikita Khrushchev. O que havia por trás da decisão dele – um desejo de ganhar apoio do estabelecimento político ucraniano ou se redimir pelas repressões em massa dos anos 1930 na Ucrânia – fica a cargo dos historiadores descobrir.
O que importa agora é que essa decisão foi tomada em nítida violação das normas constitucionais em vigor à época. A decisão foi tomada por baixo dos panos. Claro que em um Estado totalitário ninguém se importou em consultar os cidadãos da Crimeia e de Sevastopol. Estes tiveram de aceitar o fato. As pessoas, obviamente, perguntavam-se por que de repente a Crimeia se tornou parte da Ucrânia. Mas em suma – e devemos afirmar isso claramente, como todos sabem – essa decisão foi tratada como uma formalidade inferior porque o território foi transferido dentro das fronteiras de um único Estado. Na época, era impossível imaginar que Ucrânia e Rússia pudessem se dividir e se tornar dois Estados separados. Contudo, foi o que aconteceu.
Infelizmente, o que parecia impossível virou realidade. A URSS se desintegrou. As coisas aconteceram tão rapidamente que pouca gente percebeu o quanto foram drásticos aqueles eventos e suas consequências. Muitas pessoas na Rússia e na Ucrânia, assim como em outras repúblicas esperavam que a Comunidade de Estados Independentes que fora criada na época se tornaria a nova forma comum de Estado. Foram informados de que haveria uma única moeda, um único âmbito econômico e forças armadas unificadas; entretanto, não passaram de promessas vazias, enquanto o grande país havia deixado de existir. Apenas quando a Crimeia acabou se tornando parte de outro país que a Rússia se deu conta de que não havia sido simplesmente roubada, mas saqueada.
Ao mesmo tempo, devemos admitir que ao lançar a demonstração de soberania, a própria Rússia colaborou para o colapso da União Soviética. E à medida que esse colapso foi legalizado, todos se esqueceram da Crimeia e de Sevastopol - a principal base da Frota do Mar Negro da Rússia. Milhões de pessoas dormiram em um país e acordaram em outro, tornando-se, da noite para o dia, minorias étnicas nas antigas repúblicas da União, enquanto a nação russa se tornou um dos maiores, se não o maior, grupo étnico do mundo dividido por fronteiras.
Hoje, muitos anos depois, escuto residentes da Crimeia dizerem que em 1991 foram transferidos como um saco de batatas. Difícil discordar. E quanto ao Estado russo? E a Rússia? Humildemente aceitou a situação. Este país passava por dificuldades que, realisticamente, era incapaz de proteger seus interesses. Entretanto, o povo não conseguiu se conformar com essa revoltante injustiça histórica. Todos esses anos, cidadãos e diversas figuras públicas retomaram a questão, afirmando que a Crimeia é historicamente um território russo e que Sevastopol é uma cidade russa. Sim, todos nós sabíamos disso no coração e na mente, mas tínhamos de seguir a partir da realidade vigente e construir nossas relações de boa vizinhança com a Ucrânia independente em um novo patamar. Enquanto isso, nossas relações com a Ucrânia, com o fraterno povo ucraniano, sempre foi e sempre será da mais alta importância para nós.
Hoje podemos falar sobre isso abertamente, e eu gostaria de compartilhar com vocês alguns detalhes das negociações que aconteceram no início dos anos 2000. Kuchma, presidente da Ucrânia na época, pediu que eu acelerasse o processo de delimitação da fronteira russo-ucraniana. Na época, o processo estava praticamente parado. Aparentemente a Rússia havia reconhecido a Crimeia como parte da Ucrânia, mas não havia negociações sobre a delimitação de fronteiras. Apesar da complexidade da situação, eu imediatamente emiti instruções aos órgãos governamentais russos para acelerar o trabalho de documentação das fronteiras, para que todos tivessem uma nítida compreensão de que concordando em delimitar a fronteira, admitíamos de facto e de jure que a Crimeia era território ucraniano, encerrando assim a questão.
Acomodamos a Ucrânia não só quanto à Crimeia, mas também quanto à complicada questão da fronteira marítima no Mar de Azov e no Estreito de Kerch. A continuidade de lá para cá foi que boas relações com a Ucrânia eram de extrema relevância para nós e eles não deveriam ficar reféns de disputas territoriais sem saída. No entanto, esperávamos que a Ucrânia permanecesse como nossa boa vizinha, esperávamos que os cidadãos russos e os falantes de russo na Ucrânia, principalmente no sudeste e na Crimeia, vivessem em um estado amistoso, democrático e civilizado que protegeria seus direitos de acordo com as normas da legislação internacional.
Mas não foi assim que a situação se desdobrou. Foram inúmeras as tentativas de privar os russos de sua memória histórica, até mesmo de seu idioma, e sujeitá-los à assimilação forçada. Além disso, os russos, assim como outros cidadãos da Ucrânia, estão sofrendo com as constantes crises políticas e de Estado que rondam o país por mais de 20 anos.
Entendo porque o povo ucraniano queria mudanças. Estavam fartos das autoridades no poder durante os anos de independência da Ucrânia. Presidentes, primeiros-ministros e parlamentaristas mudaram, mas a sua atitude em relação ao país e ao povo continuava a mesma. Extorquiram o país, brigaram entre si por poder, recursos e caixa e não ligavam para o povo. Não lhes passava pela cabeça questionar por que milhões de cidadãos ucranianos não tinham perspectivas no próprio país e migravam para outros países para trabalhar por jornadas diárias em mão-de-obra não especializada. Gostaria de ressaltar o seguinte: não era para o Vale do Silício que migravam, mas para se tornarem assalariados não especializados. Somente no ano passado, cerca de 3 milhões de pessoas aderiram a esse tipo de emprego na Rússia. Segundo algumas fontes, em 2013 sua renda na Rússia totalizou mais de US$ 20 bilhões, o que representa cerca de 12% do PIB da Ucrânia.
Gostaria de reiterar que compreendo aqueles que foram até Maidan com slogans pacíficos contra corrupção, má administração do estado e pobreza. O direito a protestos pacíficos, procedimentos democráticos e eleições existe pelo único objetivo de substituir as autoridades que estão aquém dos desejos da população. No entanto, aqueles que estavam por trás dos mais recentes acontecimentos na Ucrânia tinham outra proposta: eles estavam preparando outra tomada de governo; queriam tomar o poder e nada era capaz de detê-los. Partiram para o terror, assassinato e tumultos. Nacionalistas, neonazistas, russófobos e antissemitas executaram o golpe. Continuam dando as cartas na Ucrânia até hoje. As novas supostas autoridades começaram introduzindo um projeto-de-lei para rever a política de idiomas, que foi uma infração direta aos direitos das minorias étnicas. Contudo, eles foram imediatamente “disciplinados” por aliados estrangeiros desses ditos políticos. É preciso admitir que os mentores das autoridades atuais são inteligentes e sabem muito bem em que essas tentativas de construir um estado puramente ucraniano podem resultar. O projeto de lei foi deixado de lado por ora, mas sem dúvida será retomado futuramente. Quase não se ouve falar dessa tentativa agora, provavelmente confiando na ideia de que a população tem memória curta. Entretanto, todos nós somos capazes de enxergar as intenções desses herdeiros ideológicos de Bandera, cúmplice de Hitler durante a II Guerra Mundial.
Também é óbvio que não há uma autoridade executiva legítima na Ucrânia hoje, ninguém com quem falar. Diversos órgãos governamentais foram tomados pelos impostores, mas eles não possuem nenhum controle no país já que eles mesmos – e quero enfatizar isto – são muitas vezes controlados por radicais. Em alguns casos, é preciso ter permissão especial dos militantes de Maidan para encontrar determinados ministros do atual governo. Não se trata de uma piada – a realidade é essa.
Os que se opuseram ao golpe foram imediatamente ameaçados com repressão. Naturalmente, a primeira da fila era a Crimeia, a Crimeia de falantes de russo. Assim sendo, os habitantes da Crimeia e de Sevastopol recorreram à Rússia para obter ajuda para defenderem seus direitos e a vida, para evitar que os acontecimentos que se desdobravam e ainda estão em andamento em Kiev, Donetsk, Kharkov e outras cidades ucranianas.
Naturalmente não poderíamos fazer vista grossa a esse pedido; não poderíamos abandonar a Crimeia e deixar seus habitantes em perigo. Isso seria traição de nossa parte.
Primeiro, tínhamos de ajudar a criar condições para que os habitantes da Crimeia, pela primeira vez na história, pudessem expressar pacificamente a sua vontade própria em relação ao próprio futuro. Mas o que escutamos de nossos colegas do oeste da Europa e América do Norte? Eles dizem que estamos violando as normas da legislação internacional. Em primeiro lugar, é bom que eles pelo menos lembrem que existe algo chamado legislação internacional – antes tarde do que nunca.
Em segundo lugar e mais importante – o que exatamente estamos violando? É verdade, o presidente da federação russa recebeu permissão da Câmara Alta do Parlamento para fazer uso das Forças Armadas na Ucrânia. No entanto, falando cruamente, ninguém se valeu dessa permissão ainda. As Forças Armadas da Rússia nunca entraram na Crimeia; elas já estavam lá em conformidade com um acordo internacional. É verdade que reforçamos a presença na região; porém – isto é algo que quero que todos escutem e saibam – não excedemos o limite de contingente de nossas Forças Armadas na Crimeia, limitado a 25 mil, porque não houve necessidade de fazê-lo.
Continuando. Como declarou independência e decidiu realizar um referendo, o Conselho Supremo da Crimeia recorreu à Carta das Nações Unidas, que fala dos direitos dos países à autodeterminação. Aliás, gostaria de lembrá-los que quando a Ucrânia se separou da URSS ela fez exatamente a mesma coisa, quase literalmente. A Ucrânia se valeu de seu direito, mas aos habitantes da Crimeia ele é negado. Por quê?
Além disso, as autoridades da Crimeia citaram o conhecido precedente de Kosovo – um precedente que nossos colegas ocidentais criaram com as próprias mãos em uma situação muito similar, quando concordaram que a separação unilateral de Kosovo da Sérvia, exatamente o que a Crimeia faz agora, era legítima e não exigia permissão das autoridades centrais do país. De acordo com o Artigo 2, Capítulo 1 da Carta das Nações Unidas, a Corte Internacional da ONU concordou com essa abordagem e fez o seguinte comentário no regulamento de 22 de julho de 2010 e que cito agora: “Nenhuma proibição geral pode ser deduzida da prática do Conselho de Segurança com relação às declarações de independência” e “a legislação internacional geral não contém nenhuma proibição nas declarações de independência”. Claro como água, como dizem.
Não gosto de recorrer a citações, mas neste caso, é impossível evitá-las. Vejamos agora uma citação de outro documento oficial: a Declaração Escrita dos Estados Unidos da América de 17 de abril de 2009, enviada à mesma Corte Internacional da ONU com relação às audiências em Kosovo. Mais uma vez, abre aspas: “As declarações de independência podem, e muitas vezes é isso que acontece, violar a legislação interna. No entanto, isso não faz delas violações da legislação internacional.” Fecha aspas. Eles escreveram isso, espalharam isso pelo mundo inteiro, fizeram com que todos concordassem e agora estão indignados. Com o que? As ações do povo da Crimeia estão em pleno acordo com essas instruções, como foram feitas. Por algum motivo, coisas que os albaneses de Kosovo (e nutrimos total respeito por eles) tinham permissão para fazer, os russos, ucranianos e tártaros da Crimeia não podem fazer. Mais uma vez, pergunto-me por que.
Sempre ouvimos dos Estados Unidos e da Europa Ocidental que Kosovo é um caso especial. O que o torna tão especial aos olhos de nossos colegas? A conclusão é que isso se deve ao fato de o conflito em Kosovo ter resultado em tantas mortes. Esse é um argumento legal? O regulamento da Corte Internacional não menciona nada sobre isso. Não se trata nem de dois pesos e duas medidas; isso é um cinismo indescritível, primitivo e descarado. Não se deve tentar tão grosseiramente fazer com que tudo satisfaça aos seus interesses, chamando uma coisa de branco hoje e amanhã de preto. Segundo essa lógica, teríamos de assegurar que todo conflito resultasse em baixas.
Afirmo categoricamente – se as unidades de autodefesa locais da Crimeia não tivessem controlado a situação, também poderia ter havido baixas. Felizmente isso não aconteceu.
Não houve sequer um confronto armado na Crimeia e nenhuma morte. Por que vocês acham que isso se deu dessa forma? A resposta é simples: porque é muito difícil, praticamente impossível, lutar contra a vontade do povo. Aqui eu gostaria de agradecer ao exército ucraniano – e estamos falando de 22 mil homens totalmente armados. Gostaria de agradecer aos membros do serviço ucraniano que evitaram o derramamento de sangue e não mancharam o uniforme com sangue.
Outros pensamentos me vêm à tona. Eles ficam falando de alguma intervenção russa na Crimeia, algum tipo de agressão. Isso soa estranho aos meus ouvidos. Não consigo me lembrar de um único caso na história de uma intervenção sem que pelo menos um tiro fosse disparado e sem mortes.
Colegas, como um espelho, a situação na Ucrânia reflete o que está acontecendo e o que aconteceu no mundo nas últimas décadas. Após a dissolução da bipolaridade do planeta, não temos mais estabilidade. As principais instituições internacionais são estão se fortalecendo; pelo contrário, em muitos casos, infelizmente estão degenerando. Nossos parceiros ocidentais, liderados pelos Estados Unidos da América, preferem não ser guiados pela legislação internacional em suas políticas práticas, mas pela lei da pistola. Passaram a acreditar em sua exclusividade e excepcionalidade, de que podem decidir o destino do mundo, que apenas eles estão certos. Agem como bem lhes apraz: aqui e ali, usam a força contra estados soberanos, criando coalisões baseando-se no seguinte princípio: “Se você não está conosco, está contra nós”. Para legitimar essa agressão, forçam as resoluções necessárias de organizações internacionais e, se por algum motivo isso não dá certo, simplesmente ignoram o Conselho de Segurança da ONU e a ONU como um todo.
Foi o que aconteceu na Iugoslávia; lembramos de 1999 muito bem. Foi difícil acreditar, mesmo vendo com meus próprios olhos, que em pleno final do século XX, uma das capitais da Europa, Belgrado, ficou sob o ataque de mísseis durante semanas e então se iniciou a intervenção real. Havia uma resolução do Conselho de Segurança da ONU sobre isso, permitindo essas ações? Nada disso. E depois, atacaram o Afeganistão, o Iraque e violaram abertamente a resolução do Conselho de Segurança da ONU na Líbia, quando em vez de impor a chamada zona de exclusão aérea na região, começaram a bombardeá-la também.
Houve toda uma série de revoluções controladas por “cor”. Claramente, as pessoas nesses países, onde esses eventos aconteceram, estavam fartas de tirania e pobreza, da falta de perspectivas; mas houve quem cinicamente tirasse proveito desses sentimentos. Foram impostos padrões para esses países que de nenhuma forma correspondem ao modo de vida, às tradições ou culturas desses povos. Como resultado, em vez de democracia e liberdade, houve caos, surtos de violência e uma série de levantes. A Primavera Árabe se transformou no Inverno Árabe.
Uma situação similar se desdobrou na Ucrânia. Em 2004, para aprovar o candidato necessário às eleições presidenciais, eles bolaram um tipo de terceiro round que não fora estipulado por lei. Foi absurdo e uma gozação com a constituição. E agora, subsidiaram um exército de militantes organizados e bem equipados.
Entendemos o que está acontecendo; entendemos que essas ações tinham como alvo a Ucrânia e a Rússia e a integração euroasiática. E tudo isso enquanto a Rússia tentava um diálogo com nossos colegas no ocidente. Estamos continuamente propondo a cooperação em todos os assuntos-chave; queremos fortalecer nosso nível de confiança e que nossas relações sejam igualitárias, abertas e justas. Mas vemos que a recíproca não é verdadeira.
Pelo contrário, mentiram para nós diversas vezes, tomaram decisões pelas nossas costas, fizeram com que aceitássemos algo que já estava decidido. Isso aconteceu com a expansão da OTAN no Oriente, assim como a preparação de infraestrutura militar em nossas fronteiras. Eles ficavam repetindo a mesma coisa: “Bem, isso não lhe diz respeito.” Isso é fácil de dizer.
Aconteceu com a organização de um sistema de defesa de mísseis. Apesar do estado de apreensão, o projeto está em andamento e segue adiante. Aconteceu com a infinita procrastinação nas conversas sobre questões de visto, promessas de concorrência leal e acesso livre aos mercados globais.
Hoje somos ameaçados com sanções, mas já vivenciamos muitas limitações, algumas bastante significativas para nós, nossa economia e país. Por exemplo, ainda durante a época da Guerra Fria, os EUA e posteriormente outros países restringiram uma grande lista de tecnologias e equipamentos comercializados na URSS, criando a lista de Comitê de Coordenação para os Controles Multilaterais de Exportações. Atualmente, foram oficialmente eliminados, mas apenas oficialmente; e na realidade, muitas limitações ainda estão em vigor.
Em suma, tudo nos leva a deduzir que a famigerada política de contenção, realizada nos séculos XVIII, XIX e XX, continua hoje. Eles estão constantemente tentando nos arrastar para um canto porque temos uma posição independente, porque a mantemos e porque chamamos as coisas pelo nome delas e não cedemos à hipocrisia. Mas para tudo há um limite. E com a Ucrânia, nossos parceiros ocidentais passaram do limite, fazendo o papel do predador e agindo de maneira irresponsável e amadora.
Afinal de contas, eles estavam totalmente cientes de que há milhões de russos vivendo na Ucrânia e na Crimeia. Eles realmente devem ter perdido o instinto político e o bom senso para não antever todas as consequências de suas ações. A Rússia se viu em uma posição da qual era impossível recuar. Se você comprime uma mola até o limite máximo, ela voltará com força na direção contrária. Lembrem-se sempre disso.
Hoje é imperativo acabar com essa histeria, refutar a retórica da Guerra Fria e aceitar o fato óbvio: a Rússia é um participante independente e ativo dos assuntos internacionais; assim como outros países, possui seus próprios interesses nacionais que precisam ser levados em consideração e respeitados.
Ao mesmo tempo, somos gratos a todos que entenderam as nossas ações na Crimeia; somos gratos ao povo da China, cujos líderes sempre analisaram a situação na Ucrânia e na Crimeia levando em consideração o contexto histórico e político completo e agradecemos imensamente a discrição e a objetividade da Índia.
Hoje eu gostaria de me dirigir ao povo dos Estados Unidos da América, as pessoas que, desde a fundação de seu país e a adoção da Declaração de Independência, orgulham-se de manterem a liberdade acima de tudo. Não é o desejo dos habitantes da Crimeia escolherem livremente o seu destino? Por favor, compreendam-nos.
Creio que os europeus, sobretudo os alemães, também me entenderão. Permitam-me lembrá-los de que durante as consultas políticas sobre a unificação das Alemanhas Oriental e Ocidental, em escopo especializado, embora de alto nível, alguns países que na época e hoje são aliados da Alemanha não apoiaram a ideia da unificação. Nosso país, porém, acertadamente apoiou o sincero e irrefreável desejo dos alemães pela unidade nacional. Tenho certeza de que não se esqueceram disso e espero que os cidadãos da Alemanha também apoiem a aspiração dos russos, da histórica Rússia, de restaurar a unidade.
Quero ainda me dirigir ao povo da Ucrânia. Sinceramente quero que nos entendam: não queremos prejudicá-los de forma alguma, ou ferir seu orgulho nacional. Sempre respeitamos a integridade territorial do estado ucraniano, aliás, ao contrário daqueles que sacrificaram a unidade da Ucrânia e, favor de suas ambições políticas. Eles exibem slogans sobre a grandeza da Ucrânia, mas são eles que fizeram de tudo para dividir o país. O impasse civil fica totalmente na consciência deles. Quero que me escutem, meus caros amigos. Não acreditem naqueles que querem que temam a Rússia, alardeando que outras regiões seguirão o exemplo da Crimeia. Não queremos dividir a Ucrânia; não precisamos disso. Quanto à Crimeia, ela foi e continua sendo uma terra russa, ucraniana e tártara.
Repito, assim como foi durante séculos, será o lar de todos os povos que lá viverem. O que nunca será e fará é seguir os passos de Bandera!
A Crimeia é nosso legado histórico comum e um fator muito importante na estabilidade regional. E esse território estratégico deve ser parte de uma soberania forte e estável, que hoje só pode ser russa. Caso contrário, caros amigos (dirijo-me aqui à Ucrânia e à Rússia), vocês e nós – os russos e os ucranianos – poderiam perder a Crimeia completamente, e isso poderia acontecer em uma perspectiva histórica próxima. Por favor, reflitam sobre isso.
Permitam-se observar também que já ouvimos declarações de Kiev dizendo que a Ucrânia em breve fará parte da OTAN. O que isso terá significado para a Crimeia e para Sevastopol no futuro? Terá significado que a marinha da OTAN estaria bem ali nessa cidade de glória militar russa, e isso criaria uma ameaça não ilusória, mas perfeitamente real para todo o sul da Rússia. Essas são coisas que poderiam ter se tornado realidade não fosse a escolha feita pelo povo da Crimeia, e quero agradecê-los por isso.
Mas quero dizer também que não somos contra a cooperação com a OTAN, mas este certamente não é o caso. Para todos os processos internos dentro da organização, a OTAN continua sendo uma aliança militar, e somos contra uma aliança militar ficando à vontade bem no nosso quintal ou em nosso território histórico. Simplesmente não consigo imaginar que viajaríamos para Sevastopol para visitar os marinheiros da OTAN. Claro, a maioria são bons rapazes, mas seria melhor que eles viessem nos visitar, como nossos convidados, e não o contrário.
Deixem-me ser bastante franco quando digo que sofremos ao ver o que está acontecendo na Ucrânia neste momento, ver o sofrimento da população e a sua incerteza sobre como atravessar o dia de hoje e o que os espera amanhã. Nossas preocupações são compreensíveis porque não somos simplesmente vizinhos próximos mas, como já disse tantas vezes antes, somos um povo. Kiev é a mãe das cidades russas. A Rus antiga é nossa origem comum e uma não vive sem a outra.
Outra coisa. Milhões de russos e falantes de russo vivem na Ucrânia e continuarão vivendo lá. A Rússia sempre defenderá seus interesses usando meios políticos, diplomáticos e legais. Mas deve estar acima de tudo no próprio interesse da Ucrânia assegurar que os direitos e interesses desse povo sejam totalmente protegidos. Essa é a garantia de estabilidade e integridade territorial do estado ucraniano.
Queremos ser amigos da Ucrânia e queremos que a Ucrânia seja um país forte, soberano e autossuficiente. Afinal, a Ucrânia é um de nossos maiores parceiros. Temos muitos projetos em parceria e acredito em seu sucesso sejam quais forem as dificuldades atuais. Acima de tudo, queremos paz e harmonia para governar na Ucrânia, e estamos prontos para trabalharmos juntos com outros países para fazer tudo que for possível para facilitar e apoiar isso. Mas como eu disse, apenas o próprio povo da Ucrânia pode arrumar a própria casa.
Habitantes da Crimeia e da cidade de Sevastopol, toda a Rússia admirou a sua coragem, dignidade e valentia. Foram vocês que decidiram o futuro da Crimeia. Nunca estivemos tão próximos nesses dias, apoiando-nos mutuamente. Foram sentimentos sinceros de solidariedade. São em momentos decisivos da história como esses que um país demonstra maturidade e presença de espírito. O povo russo demonstrou essa maturidade e força por meio do apoio unido aos seus compatriotas.
A posição da política estrangeira da Rússia nessa questão encontrou essa solidez na vontade de milhões de pessoas do nosso povo, nossa unidade nacional e o apoio das principais forças políticas e públicas de nosso país. Quero agradecer a todos por esse espírito patriótico, todos sem exceção. Agora precisamos continuar e manter esse nível de consolidação a fim de solucionar as tarefas que nosso país enfrentará no caminho que tem pela frente.
Obviamente enfrentaremos oposições externas, mas essa é uma decisão que precisamos tomar para nós mesmos. Estamos prontos para defender consistentemente nossos interesses nacionais ou sempre cederemos, recuando para quem sabe onde? Alguns políticos ocidentais já estão nos ameaçando não só com sanções mas também com a perspectiva de problemas cada vez mais graves no fronte interno. Gostaria de saber o que exatamente eles têm em mente: a quinta coluna em ação, esse monte de “traidores nacionais” sem nexo ou será que esperam nos colocar em uma situação de degradação social e econômica a fim de causar descontentamento público? Consideramos essas declarações irresponsáveis e de tom nitidamente agressivo, e responderemos à altura. Ao mesmo tempo, jamais buscaremos confronto com nossos parceiros, sejam eles do Ocidente ou do Oriente, pelo contrário, faremos de tudo para construir relações civilizadas e de boa-vizinhança como deve ser no mundo moderno.
Colegas, entendo o povo da Crimeia, que coloca a questão nos termos mais claros possíveis no referendo: a Crimeia deve ficar com a Ucrânia ou com a Rússia? Podemos seguramente afirmar que as autoridades da Crimeia e de Sevastopol, as autoridades legislativas, ao formularem a pergunta, deixaram de lado os interesses políticos e partidários e fizeram com que apenas os interesses fundamentais do povo fossem o alicerce daquela missão. As singulares circunstâncias históricas, populacionais, políticas e econômicas da Crimeia poderiam ter feito optado por qualquer outra proposta – não importa o quanto tentador possa ter sido em um primeiro momento – apenas temporária e frágil e teriam inevitavelmente levado a uma degradação ainda maior da situação por lá, o que teria gerado efeitos desastrosos na vida das pessoas. A população da Crimeia decidiu assim colocar a questão de forma firme e desimpedida, sem pontos cegos. O referendo foi justo e transparente e o povo da Crimeia expressou a sua vontade clara e convincentemente e afirmou que querem estar com a Rússia.
A Rússia agora também terá de tomar uma difícil decisão, levando em conta as diversas considerações internas e externas. O que as pessoas aqui na Rússia acham? Aqui, como em qualquer país democrático, as pessoas têm diferentes pontos de vista, mas afirmo que a maioria absoluta de nosso povo apoia abertamente o que está acontecendo.
As pesquisas de opinião mais recentes realizadas aqui na Rússia mostram que 95% das pessoas acham que a Rússia deve proteger os interesses dos russos e membros de outros grupos étnicos que vivem na Crimeia – 95% de nossos cidadãos. Mais de 83% acham que a Rússia deve fazer isso, mesmo que isso complique nossas relações com alguns países. Um total de 86% do nosso povo enxerga a Crimeia como território ainda russo e parte das terras de nosso país. E um número particularmente importante, que corresponde exatamente ao resultado do referendo na Crimeia: quase 92% do nosso povo apoia a reunificação da Crimeia com a Rússia.
Assim sendo, vemos que a maioria esmagadora de pessoas na Crimeia e a maioria absoluta da população da federação russa apoia a reunificação da República da Crimeia e da cidade de Sevastopol com a Rússia.
Agora se trata de uma questão de decisão política da própria Rússia e qualquer decisão aqui só pode estar embasada na vontade do povo, porque do povo emana a autoridade.
Membros do Conselho Federal, representantes da Duma Estatal, cidadãos da Rússia, habitantes da Crimeia e de Sevastopol, hoje, de acordo com a vontade do povo, envio à Assembleia Federal uma solicitação para que considerem uma Lei Constitucional para a criação de duas novas entidades constituintes na federação russa: a República da Crimeia e a cidade de Sevastopol, e ratificação do tratado sobre a admissão à federação russa da Crimeia e de Sevastopol, que está pronta para assinar. Certo de vosso apoio."
*Tradução de Claudia Freire