As lições da guerra civil que continua na Síria já pelo terceiro ano seguido são muito diversas, elas têm a ver com quase todas as áreas da vida - social, étnica, religiosa, econômica e militar.
Ilia Kramnik | Voz da Rússia
Estabilidade previsível
A questão de porquê o exército sírio não ter caído aos bocados tem se ouvido repetidamente. Desde o início da guerra, muitos especialistas previam sua breve desintegração, dada a sua composição étnica e religiosa. A maioria sunita da população, da qual provem uma parte significativa dos militares, sugeria a possibilidade de passagem de unidades do exército em massa para o lado da oposição, mesmo quando esse conceito na Síria ainda não era associado com terrorismo e assassinato de civis. No entanto, em geral, o exército, como um organismo, permaneceu gerenciável e apto para combate, mesmo que a capacidade de combate de suas unidades individuais seja variada.
A resposta a esta pergunta, posta por mim na Síria a diferentes interlocutores, se resumia a uma coisa: todos os cenários possíveis neste caso eram para os militares e a sociedade piores do que o sistema construído por duas gerações da família al-Assad na Síria:
“Temos uma forma de governo bastante dura, mas al-Assad entende onde estão os limites e que as pessoas precisam de espaço “para si”, para seus ganhos, para a vida. Seus oponentes são muito piores a este respeito. Destruindo os cristãos e mesmo aqueles muçulmanos que discordam deles, eles estão mostrando já agora – vejam, nós vamos fazer isto em todo o país quando chegarmos ao poder. Só um ponto de vista é certo – o nosso.”
Do outro lado da janela vejo Damasco – Dimashq ash-Sham, uma das cidades mais antigas do mundo, o coração do Levante. Damasco, obviamente, não se encaixa nos cânones do “puro Islã” nascidos nos desertos da Arábia, mas é ela e outras grandes cidades que definem os ânimos da Síria. Isso é bastante compreensível se nos lembrarmos da história do país: a Síria é um cruzamento eterno, uma oficina, um mercado e um porto desde os tempos da antiga Fenícia, cujos herdeiros os sírios se consideram até mesmo hoje em dia. Isso faz o país muito diferente do Irã, onde a revolução islâmica se tornou possível no seu tempo porque Teerã ocidentalizada se distanciou demasiado da província tradicional sem ter o peso que na Síria têm Damasco e Aleppo.
Aleppo é a capital econômica da Síria, e hoje a cidade está sendo sistematicamente destruída, inclusive por este motivo. Os bandos não conseguem tomar a cidade, mas fizeram tudo para destruir a indústria na periferia e nos subúrbios. Além disso, uma grande quantidade de equipamento é levada para a Turquia, de cujo território atuam formações armadas ilegais. A atividade de negócios mudou em grande parte para Damasco, onde abriu uma multidão de novas pequenas e médias empresas, especialmente porque nesta esfera hoje o governo adere a visões ainda mais liberais: em condições de ruína econômica não se deve impedir as pessoas de se alimentarem por conta própria.
Código cultural
A religião predominante na Síria é o Islã, mas, como já foi dito, o país não pode ser chamado de islâmico. Dentro da antiga Mesquita dos Omíadas, junto da qual deve ocorrer, segundo a lenda, a segunda vinda de Cristo, estão guardadas as relíquias de São João Batista. E peregrinos cristãos – ortodoxos e católicos – junto do mausoléu das relíquias, perto do minbar – o púlpito do imame – não surpreendem ninguém. Nas portas da cidade antiga pode-se encontrar tanto crucifixos como crescentes ou estrelas de David – existe em Damasco uma comunidade judaica, e em alguns lugares as portas estão ornadas com esculturas da deusa Ishtar. A fé em Damasco, como em qualquer cidade antiga, é uma questão pessoal, e o seguimento de suas próprias tradições durante muito tempo não incomodou ninguém. Templos de Damasco, Homs, Aleppo, Tartus, Maaloula e outras cidades com uma grande proporção de população cristã tradicionalmente reuniam seus paroquianos para rezar até que um dia “eles” – assim chamam na Síria de forma generalizada os fanáticos do Islamismo com grandes barbas – decidiram que tal situação é contrária à sua ideia de como deve ser.
Os templos são bombardeados com morteiros, feitos explodir, simplesmente blasfemados, e sem esquecer de culpar o exército de todos estes pecados. Um general do exército sírio que está comandando mais uma operação na área de Maaloula diz que só usa a aviação de combate para atacar as comunicações dos bandidos e suas posições distantes da cidade.
“A cidade velha de Maaloula é muito fraca, o uso de aviões de combate irá destruí-la completamente, e lá estão, em primeiro lugar, os habitantes, e em segundo lugar – muitos monumentos culturais. Nós não nos podemos permitir isso.”
Tos terroristas, pelo contrário, atacam também locais sagrados muçulmanos – a mesma Mesquita dos Omíadas. Um recente ataque matou quatro pessoas e feriu outras vinte em 29 de outubro, numa sexta-feira, um dia sagrado para os muçulmanos. A mina bateu na calçada mesmo junto da parede da mesquita.
Os bandidos, entre os quais há muitos mercenários estrangeiros, com o apoio de uma determinada parte da juventude que não encontrou seu lugar na vida, estão sistematicamente destruindo “pontos de força” – lugares que guardam a memória histórica do país, informações sobre possíveis caminhos diferentes e outras culturas. É um fenômeno da mesma ordem que a explosão dos Budas de pedra de Bamiyan no Afeganistão. O “islã puro” internacional não precisa de uma cultura nacional antiga – nem no Afeganistão, nem na Síria, nem em nenhum outro lugar.