José Casado - O Globo
Um novo contingente de 1.200 soldados brasileiros deve desembarcar no Haiti nas próximas duas semanas. Em Port au Prince, capital haitiana, preparam-se eleições legislativas previstas para o início de 2014 nas quais devem participar candidatos de 13 partidos políticos. É muito provável que as patrulhas brasileiras pelas favelas haitianas durante essas eleições sejam realizadas a bordo de novíssimos veículos blindados sobre rodas, equipados com canhões de 90 milímetros e moderna eletrônica embarcada, revestidos por chapas resistentes a balas de calibre 7,62 milímetros, estilhaços de granadas ou explosivos leves. O modelo sai de fábrica com a marca "Guarani".
Significa que, se tudo sair como previsto, o território haitiano servirá como campo de testes do Exército brasileiro em mais uma missão na América Central e com uma novidade da tecnologia bélica desenvolvida pela subsidiária Iveco do grupo italiano Fiat. Prevêem-se encomendas de pelo menos dois mil blindados em contrato de valor estimado em U$ 2,5 bilhões.
Em abril do próximo ano as tropas do Brasil completam uma década de presença ostensiva no Haiti. Já estão por lá há mais tempo, por exemplo, do que os soldados dos Estados Unidos estiveram no Iraque, se contado o tempo entre a segunda Guerra no Golfo, em 2003, e a retirada do último batalhão, em 2011. No caso brasileiro não há perspectiva de retorno, por enquanto.
No último fim de semana, em Brasília, a presidente Dilma Rousseff ouviu um apreensivo José Mujica, presidente do Uruguai, anunciar a decisão de retirar o contingente enviado à missão de paz no Haiti. Capitaneada pelo Brasil e patrocinada pela Onu, esse esforço de pacificação dura quase uma década e foi decisivo tanto para evitar uma guerra civil, no momento inicial, quanto mais tarde na emergência do terremoto que matou mais de 300 mil pessoas - entre elas, alguns brasileiros como Zilda Arns, responsável pelo mais eficaz programa de atenção médica infantil realizado no Brasil nos últimos tempos.
Manter tropas no Haiti custa US$ 150 milhões ao ano, segundo o Tribunal de Contas da União. É relativamente caro, mas é um custo perfeitamente suportável em orçamento federal como o brasileiro. O problema está na eficácia e, para medir, é necessário lembrar que ao decidir enviar tropas à América Central o governo Lula não estava apenas agindo de forma humanitária, mas promovendo um "eixo de política externa" - expressão usual no Itamaraty. Percebeu-se a crise haitiana como oportunidade para expor o peso e o compromisso regional do Brasil, eterno candidato a uma cadeira permanente no Conselho de Segurança da Onu.
Dez anos se passaram, as tropas brasileiras continuam no Haiti, sob risco real de confrontos nas áreas onde a maioria sobrevive com menos de US$ 2 ao dia, dominadas por rede de múltiplos tráficos e sob um governo de reputação duvidosa e de reconhecida ineficiência.
Dê-se o nome que desejar à intervenção no Haiti, o fato é que, depois de quase dez anos, nem a paz se conseguiu garantir, muito menos a efetiva reconstrução institucional e econômica do país. A retirada de tropas deveria ser o primeiro item de uma revisão do aval brasileiro a esse remendo político mal feito pela Onu. Ela deveria acontecer na esteira de uma profunda revisão de objetivos da política externa, porque a obsessão pela cadeira no Conselho de Segurança reduziu o Haiti a um campo de testes do mais recente pacote bilionário de armas adquiridas pelo Exército. O fracasso bate à porta do Itamaraty.