Lourival Sant´Anna - O Estado de S. Paulo
O governo do primeiro-ministro Recep Tayyip Erdogan pretende capacitar a Turquia para adquirir armas nucleares, caso isso se torne necessário, admitiu um funcionário do primeiro escalão, envolvido diretamente nessa área, a uma fonte ouvida pelo ‘Estado’. A discreta mobilização da Turquia é o primeiro sinal de uma possível corrida nuclear na região, como consequência do programa iraniano.
A empresa China Precision Machinery Import and Export Corp. (CPMIEC), acusada pelos EUA de vender tecnologia nuclear de uso militar para Coreia do Norte, Irã e Síria, recebeu a maior pontuação em uma licitação promovida pela Turquia, para fornecer ao país um sistema de mísseis, orçado em US$ 4 bilhões. O sistema é tecnicamente incompatível com o adotado pela Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), a aliança de defesa ocidental liderada pelos EUA e países europeus, da qual a Turquia é membro.
A transação causou nervosismo no governo americano, como duplo indicador de possíveis pretensões nucleares da Turquia e de um distanciamento de Ancara da aliança de 28 membros.
"Transmitimos nossas graves preocupações sobre a negociação contratual do governo turco com uma empresa sob sanção dos EUA para um sistema de defesa de mísseis que não será compatível com os sistemas ou capacidades de defesa coletiva da Otan", declarou, no dia 30, a porta-voz do Departamento de Estado, Jen Psaki.
Paralelamente, a Turquia contratou a instalação de duas usinas nucleares, no valor total de US$ 30 bilhões. A primeira será construída pela empresa russa Rosatom - a mesma que fez o reator de Bushehr, no Irã, inaugurado em 2011 -, ao custo de cerca de US$ 8 bilhões, em Mersin Akkuyu, no sul da Turquia. A segunda está a cargo de um consórcio das japonesas Mitsubishi Heavy Industries e Itochu Corporation, com a francesa GDF Suez, e será instalada na cidade de Sinop, na costa do Mar Negro, em investimento estimado em US$ 22 bilhões.
O governo calcula que, quando estiverem operando, em 2023, essas usinas fornecerão 10% da eletricidade consumida na Turquia, um país que não produz petróleo nem gás natural, mas que está rodeado de fornecedores dessas fontes de energia. Erdogan tem evitado um debate sobre o tema no país. De acordo com o cientista político Sahin Alpay, da Universidade Bahcesehir, de Istambul, dois terços dos turcos são contra a energia nuclear por razões de segurança.
Oficialmente, o governo turco afirma que seu programa se destina apenas a suprir a necessidade crescente de energia do país, cuja economia cresceu em média 9% ao ano, em 2010 e 2011, até sofrer uma desaceleração em 2012, quando o índice foi de 2,2%, em razão da crise europeia. A renda média per capita anual quase quadruplicou, de US$ 3 mil para US$ 11mil, desde que Erdogan assumiu em 2002, o que explica, em parte, suas sucessivas reeleições, em 2007 e 2011.
Rivalidade. Desde que o então presidente Mahmoud Ahmadinejad anunciou, com grande alarde, o início do enriquecimento de urânio, em fevereiro de 2006, analistas têm previsto que os principais adversários do Irã na região, a Turquia e a Arábia Saudita, tenderiam a tomar o mesmo rumo.
Embora sejam rivais históricos, a Turquia e o Irã têm boas relações. Em 2010, Erdogan e o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva tentaram mediar uma solução para o impasse criado pelo programa iraniano. A proposta, aceita pelo regime de Teerã, previa que o Irã entregasse à Turquia 1.200 kg de urânio enriquecido a 3,5% (do total de 2.300 kg que o país possuía). A Turquia lhe devolveria, um ano depois, 120 kg enriquecidos a 20%.
Depois de firmar acordo, o Irã anunciou que continuaria enriquecendo urânio até 20%. A proposta foi desprezada pelos EUA e seus aliados europeus. No dia seguinte, a então secretária de Estado Hillary Clinton anunciou ter obtido apoio da China (já tinha o da Rússia) para levar adiante votação de novas sanções contra o Irã no Conselho de Segurança.
O Irã fornece petróleo à Turquia, que lhe presta favores para driblar sanções comerciais e financeiras, observa Sahin Alpay, que na quinta-feira deu uma palestra no Instituto Fernando Henrique Cardoso, em São Paulo. "A relação é de parceria e, ao mesmo tempo, de competição", definiu. "Um se sente vulnerável perante o outro."
Na guerra civil síria, ambos ficaram de lados opostos. O Irã apoia Bashar Assad, que pertence à minoria alauita, seita próxima à xiita, dominante no Irã. A Turquia apoia a oposição, cuja Coalizão Nacional tem sede em Istambul. Na Turquia, 15% da população pertence à seita alevi, cujo nome, assim como o dos alauitas, deriva de Ali, genro do profeta Maomé, seguido por eles e pelos xiitas. Os alevis, como os alauitas, não obedecem os cinco pilares do Islã. No Irã, 16% da população é da etnia azeri, que ocupa algumas das regiões mais ricas em petróleo do país, e pertence à família túrquica, que tem a mesma origem dos turcos.
E há Israel, a única potência nuclear do Oriente Médio. Depois de gozarem de décadas de boas relações, fincadas sobre as diferenças de ambos diante dos árabes, Israel e Turquia romperam em 2010, depois do ataque israelense a uma força-tarefa naval turca que tentava furar o bloqueio à Faixa de Gaza para levar ajuda aos palestinos.
Em março, pressionado pelo presidente Barack Obama, o primeiro-ministro israelense, Binyamin Netanyahu, pediu desculpas pelo episódio e os dois países estão discutindo uma indenização pelo ataque, que deixou nove mortos.
Ao assumir, em 2002, Erdogan adotou uma política externa apelidada de "problema zero", de estender as mãos aos vizinhos e evitar tensões. Em grande medida, ele tem sido bem-sucedido. Mas, como mostra a guerra civil na Síria, com a qual a Turquia tinha conseguido superar disputas históricas, essa não é uma região com vocação para "problema zero".