BBC Brasil
Nos últimos três anos, a península do Sinai, no Egito, tem se transformado cada vez mais em uma região violenta e uma terra sem lei. Tudo isso antes mesmo da saída do poder do presidente Mohammed Morsi e do massacre, na semana passada, de seus partidários.
E apesar de o Sinai ter sido sempre instável, a revolução de 2011 no Egito provocou a retirada das forças de segurança da península e a libertação de ex-militantes que estavam presos.
Armas circularam intensamente pelo deserto do Sinai, vindas do Sudão e da Líbia, para a Faixa de Gaza, dominada pelo Hamas.
Tradicionalmente independentes, grupos de beduínos passaram a facilitar as redes de tráfico. Fortalecidos, os militares (tanto estrangeiros como líderes tribais locais) colocaram em prática uma estratégia de sequestrar turistas e atacar soldados e policiais.
No fim de 2011, alguns desses militantes tentaram inclusive estabelecer um braço da Al-Qaeda no Sinai, chamado Ansar Al-Jihad. No entanto, a militância na região segue dominada por uma gama de grupos com laços menos estreitos com a Al-Qaeda.
Não houve trégua durante o governo de Morsi. Foi nesse período, inclusive, que ocorreu um dos episódios mais violentos, quando 16 soldados egípcios foram mortos no Sinai, próximo à fronteira com Israel, em agosto de 2012.
Soberania
O ataque foi lançado por um grupo local ─ o Ansar Jerusalém ─ e fez com que a Irmandade Muçulmana instigasse o governo a "confrontar esse grave desafio à soberania do Egito e proteger o Sinai de grupos armados".
Morsi respondeu com uma forte repressão, incluindo a demolição de túneis entre o Sinai e Gaza.
Mas apesar desses esforços, o presidente foi acusado pelo Exército de ser muito leniente, após ter libertado da prisão alguns muçulmanos e ter vetado operações militares no Sinai.
Medidas como essas foram apontadas como um dos motivos pela queda de Morsi. No entanto, há evidências mostrando que ele lidou com a região da mesma maneira que seus predecessores.
A violência no Sinai tem se intensificado após a saída de Morsi, sugerindo que os eventos no centro do Egito estão intensamente ligados aos que acontecem na periferia do país. Qual a razão disso?
A crise política do Egito começou com o confronto entre o Exército e a Irmandade. Alguns grupos islâmicos, incluindo os extremistas salafistas, até apoiaram o golpe em um primeiro momento. A Irmandade ficou isolada.
Mas as táticas pesadas do Exército e o aparente desejo do governo em erradicar a Irmandade estão inflamando a violência jihadista, dando um ímpeto extra aos militantes.
A batalha contra a Irmandade vem sendo interpretada como uma batalha contra as correntes muçulmanas, não apenas contra um partido político.
A própria Irmandade é cautelosa ao apoiar apenas resistências pacíficas, apesar da reação violenta de seus partidários país afora.
Repercussão regional
Os últimos eventos no Sinai também enfatizam o fato de que a crise no Egito é regional.
Os militantes no Sinai podem ameaçar cidades israelenses com seus foguetes de longo alcance. Há duas semanas, o que parece ter sido um ataque de drone (avião não-tripulado) israelense ─ conduzido com a permissão do Egito ─ matou quatro pessoas na região.
O Egito também foi autorizado por Israel a mover dois batalhões para o Sinai, como parte de uma grande operação contra os militantes ─ outro fator que contribuiu para intensificar a violência.
Por isso os israelenses têm feito lobby para que os Estados Unidos resistam a pedidos para suspender pacotes de ajuda ao Exército egípcio.
O governo americano também está preocupado com o fato de os generais responderem a um eventual corte suspendendo operações de segurança conjunta ou até permitindo que a situação no Sinai se deteriore ainda mais. Isso poderia inflamar Gaza e colocar em risco as negociações de paz entre israelenses e palestinos, retomadas recentemente.
A instabilidade na região também resultou em ataques a gasodutos que seguem para a Jordânia, colocando pressão na frágil economia desse importante aliado americano.
Repressão
A península do Sinai pode ser um mau presságio para o que está por vir no Egito.
Se o governo seguir em sua ameaça para banir a Irmandade, os aliados mais radicais e violentos do grupo ─ incluindo os que são baseados no Sinai ─ vão enfrentar um excesso de novos recrutas.
A repressão estatal contra a Irmandade nos anos 50 e 60 levou o grupo à ilegalidade e foi crucial para moldar a ideologia da jihad internacional atual.
O atual líder da Al-Qaeda, Ayman al-Zawahiri, foi um jovem membro da Irmandade, que se mudou do islamismo para a jihad nesse período.
Atualmente, esse processo teria também as vantagens das mídias sociais, dos Estados fragilizados como Líbia, além do crescimento dos aliados da Al-Qaeda na Síria e Iêmen.
A retória "exterminadora" do Exército e sua brutalidade, assim como a violência dos próprios aliados da Irmandade contra as forças de segurança e minorias, podem levar à repetição dessa radicalização.
Se os dois lados não conseguirem entrar em acordo, então mais partes do Egito passarão a se assemelhar ao Sinai e essas ondas serão sentidas muito além das fronteiras do país.