Secretário nacional de Justiça pediu desculpas para cada uma das sete brasileiras
Tatiana Farah – O Globo
SÃO PAULO - Lágrimas e reencontros marcaram nesta sexta-feira o "julgamento" de sete mulheres vítimas da ditadura militar. Em sessão especial de homenagem às mulheres, a Comissão da Anistia julgou e anistiou mulheres que sofreram torturas e perseguições políticas.
- Quero, em nome do Estado, pedir desculpas por todas as perseguições, prejuízos e dores que a senhora sofreu - disse o secretário nacional de Justiça e presidente da Comissão de Anistia, Paulo Abrão, a cada uma das mulheres, entre elas Hilda Alencar Gil, que reivindicou o direito de voltar a estudar Ciências Sociais na USP, já que teve de abandonar o curso devido a perseguições políticas.
Integrante do grupo Polop (Política Operária), Hilda foi mulher do jornalista Pedro Ferreira de Medeiros. Pedro escreveu um artigo histórico na extinta revista O Cruzeiro, sobre o famigerado Comando de Caça aos Comunistas (CCC). No texto intitulado "Comando do Terror", de 1968, o jornalista dava nomes e conta histórias de integrantes do CCC, o que deflagrou uma perseguição ao casal que não teve parada, mesmo com Pedro e Hilda no exílio.
- A verdade é que ele (Pedro) sempre se recusou a desmentir qualquer uma daquelas afirmações - disse Hilda, que passou a receber uma pensão de R$ 2 mil e uma cota de R$ 222 mil em relação aos pagamentos retroativos desde que correu o processo de anistia.
Planos de estudos e empregos adiados
Militante da Ação Popular (AP) nos anos 60, Ida Schrage teve de viver na clandestinidade , mas acabou presa em 1969. Ficou quatro meses no Dops, onde sofreu tortura física e psicológica. Foi condenada pelo tribunal militar a seis anos de prisão. Na Alemanha, onde se abrigou, dedicou-se a apoiar as mulheres vítimas de violência do Estado de diversos países:
- Estar aqui é um milagre. Não era humano o que fizeram com as pessoas. O sadismo com que nos tratavam. Eles usaram e abusaram de nós, mulheres, com uma falta de respeito, uma desconsideração. Espero que sejam julgados porque tem gente que merece - discursou Ida, emocionada, que comparou: - O processo de tortura, de querer quebrar o indivíduo é internacionalizado.
Ida recebeu uma pensão de R$ 2 mil, o valor médio das anistiadas, e retroativos de R$ 213 mil. Disse que estava emocionada de reencontrar companheiras de militância e prisão. Uma delas é Dulce Maia, ex-guerrilheira da VPR (Vanguarda Popular Revolucionária) e ex-presa política.
- Nos abraçamos e lembramos de quando dormíamos na mesma cama, fazíamos cafuné e curativos, dentro do que era possível.
Maria Angélica Bacellar, que foi presa e torturada quando estava grávida, sofreu sequelas na coluna e acabou tendo de passar por cirurgia. O governo paulista considerou seu sofrimento como tortura de nível mais crítico e ela já recebeu do estado R$ 30 mil. Na sexta-feira, da Comissão da Anistia, recebeu uma indenização de R$ 100 mil.
- Apesar de muitos anos, é muito dolorido falar desse período - disse Angélica, que não era ligada a nenhuma organização, mas conhecia diversas lideranças já que seus pais adotivos eram comunistas.
- Quando me prendeu, o Fleury (delegado Sérgio Paranhos Fleury), dizia "você vai ser a pessoinha que vai me contar tudo sobre isso". As coisas que eu sabia que poderiam ser contadas eu contava. E as que não poderiam, como se diz hoje, eu deletava - disse ela, que, apesar dos choques e das agressões, teve um bebê sadio, já fora da prisão.
Os casos das irmãs Maria Nadja e Maria Niedja Leite de Olivera foram julgados juntos. Niedja recebeu uma indenização de 240 salários mínimos, por nove anos, que foi o período em que ela ficou à espera da contratação como professora de Geografia da USP. Apesar de passar em primeiro lugar no concurso interno da universidade, Niedja foi barrada por perseguição política.
Maria Nadja teve de abandonar os estudos e acabou presa e condenada em Fortaleza, onde as duas faziam movimento estudantil. Clandestina
- Eu vejo minha prisão como um demérito. Porque me deixei prender na passeata (de estudantes) depois de ter corrido tanto da polícia - brincou ela, em um dos raros momentos de descontração da cerimônia.
‘Mães de maio’
Os outros casos julgados foram os de Darci Toshiko Miyaki e Gilda Fioravante.
Na plateia, ex-presos políticos, ex-guerrilheiros e lideranças dos movimentos de direitos humanos do país se comoviam com as memórias reveladas pelos relatores dos processos. Antes de começar o julgamento, o secretário Paulo Abrão fez uma homenagem a diversas mulheres, a maioria já idosas, que lutaram contra a ditadura, entre elas Clara Charf, viúva de Carlos Marighela. Mas, entre as homenageadas, estavam também as "mães de maio", movimento formado por mães que perderam seus filhos na reação aos ataques de facções criminosas em maio de 2006.
- A tortura de hoje é a tortura não investigada do passado. É a mesma – disse Paulo Abrão.
O discurso de Débora Maria da Silva, representante das mães de maio, foi o que mais comoveu a plateia.
- Estou chocada com o passado porque não é diferente do presente. Vivemos uma ditadura continuada, uma democracia camuflada. Mais de 600 pessoas tombaram (em maio de 2006). Clamamos que esses crimes sejam investigados para não encobrir os algozes que são do passado também. Exigimos deste país a memória, a justiça e a verdade do que aconteceu em maio e do que aconteceu na ditadura. Exigimos a abertura dos arquivos da ditadura. Somos lutadores e lutadoras que lutam por uma liberdade que não tem, que não veio. Perdi meu filho que era gari, eu não podia ficar calada - disse ela, sendo aplaudida de pé pela plateia.