Pela primeira vez, filha de Rubens Paiva, que também foi presa, conta o que passou; família cobra Esclarecimentos
Miriam Leitão e Cláudio Renato – O Globo
Há muitas histórias perdidas e famílias sem respostas no Brasil. Os pedaços de informação que se tem sobre os desaparecidos políticos exibem a face de um regime que torturou, matou e ocultou cadáveres. A democracia, em 27 anos, não conseguiu romper o impedimento dos militares às investigações. No caso Rubens Paiva, fica clara a culpa das Forças Armadas. Feriado no Rio, dia ensolarado aquele 20 de janeiro de 1971. Rubens Paiva viu a filha Eliana, de 15 anos, descer as escadas do sobrado à beira-mar, no número 80 da Delfim Moreira, no Leblon, enquanto conversava com o amigo Raul Riff. Pediu à filha um beijo. Eliana viveria o próprio horror. Quando voltou da praia, a casa já havia sido invadida, e o pai estava preso. Foi ameaçada por um militar com um cabo elétrico. No dia seguinte, foi levada presa, encapuzada, junto com sua mãe, para o DOI-Codi. Ela falou pela primeira vez depois de 40 anos para a GloboNews.
- Passavam soldados, e me chamavam de comunista, davam coque na minha cabeça ou tentavam abusar de mim. Fui revistada por homens em todo o meu corpo, colocada numa espécie de corredor polonês. Não sabia onde estava minha mãe. Meu pai estava preso. O pior momento foi quando comecei a ouvir as torturas horríveis que ocorriam neste país. Ouvia os berros: "Pelo amor de Deus, não façam isso". No dia seguinte, me entregaram a bolsa da minha mãe e me deixaram na Praça Saenz Peña.
Cecília, professora do Colégio Sion, e Marilene, a irmã de sua nora, ambas sem militância política, foram torturadas naqueles dias, no mesmo caso. Cecília viu e ouviu Rubens Paiva sofrer.
Elas estavam no avião que chegou do Chile na manhã de 20 de janeiro de 1971. Foram presas pela Aeronáutica, ainda no avião, com uma correspondência que seria entregue a Rubens Paiva. No final da manhã, seis militares da Força Aérea, armados de metralhadoras, invadiram a casa do exdeputado.
Horas depois, ele estava apanhando e ouvindo dos seus torturadores os gritos:
- Vai falar ou não vai falar, Rubens Paiva, ex-deputado federal cassado?!
Começou a ser espancado na 3 Zona Aérea. Continuou sofrendo no quartel da Polícia do Exército da Barão de Mesquita. Foram horas de agonia registradas em texto que a professora Cecília Viveiros de Castro escreveu na época. Rubens Paiva é um dos 183 desaparecidos políticos listados pela Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Ulysses Guimarães, na promulgação da Constituição, disse que ele era a encarnação da sociedade que resistiu à ditadura.
Quando os militares da Aeronáutica invadiram a casa e deram voz de prisão a Rubens Paiva, ele disse que iria no seu carro, um Opel grená. O carro foi resgatado em 2 de fevereiro pela irmã dele na Polícia do Exército. Os militares pediram que ela assinasse um documento que comprovava ter recebido o carro; ela ficou com a cópia. Esse recibo, guardado por 41 anos, é a única prova física de que Rubens Paiva foi levado para lá. Do que o acusavam, afinal? Aos 41 anos, ele era bem-sucedido empresário do setor de construção, com paixão enorme pela política. Havia feito parte da campanha O Petróleo É Nosso, participou da política estudantil dos anos 50. Foi eleito deputado pelo PTB e, no Congresso, fez parte de CPI polêmica, a do Ibad, que comprovava que dinheiro americano financiava conspiração contra o governo democrático. Seu nome e os dos seus melhores amigos estavam na primeira lista dos cassados, como Waldyr Pires, com quem tomou um chopinho naquela manhã, ou Riff, que fora visitá-lo em casa, ou Almino Afonso, que estava no Chile. Era só um grupo de inconformados com a ditadura.
Mas os pontos foram se fechando num enredo trágico. De um lado, o destemor do ex-deputado; de outro, a paranoia de um regime de força. Em dezembro de 1970 fora sequestrado o embaixador suíço Giovanni Enrico Bucher, o quarto diplomata desde o ano anterior. Os 70 presos políticos libertados foram para o Chile. O próprio Rubens Paiva tinha ido àquele país na época, para conhecer o regime socialista de Salvador Allende, que assumira o poder
Adriano e Rubens se conheceram quando o ex-deputado ajudou a filha de um dos seus amigos cassados a fugir do Brasil. Waldir Pires conta a fuga.
- A moça era filha de Bocayuva Cunha, que estava muito nervoso com a situação. O Rubens disse: "Fique tranquilo, que eu vou tirar a menina do país". E fez. Alugou uma Mercedes-Benz, contratou um motorista, colocou a moça no carro e foi junto. Atravessou as fronteiras da Argentina e foi até ao Chile. Ele era um D"Artagnan, compara o ex-governador da Bahia.
O caso do Rubens Paiva ainda assombra o país pela incapacidade de a democracia esclarecer e punir. Sua filha Vera falaria na cerimônia em que a presidente Dilma sancionou a lei que criou a Comissão da Verdade. A justificativa foi que faltou tempo. Ela prefere não acreditar que foi vetada.
- Se foi uma opção política, foi uma má opção. Estamos querendo que eles sejam julgados com direito a defesa. O direito que negaram ao meu pai.
Rubens Paiva foi visto pela última vez na Polícia do Exército. Os militares tentaram enganar a opinião pública alegando que ele fugira. Eunice, sua mulher, ficou 12 dias presa e, depois de sair, passou a ser ameaçada. Voltou a estudar. Formou-se em Direito, criou os filhos e juntou-se ao movimento pela Anistia.
- Minha mãe sempre disse que aquilo não era uma luta de uma viúva contra um país. Era a luta de um povo contra um regime - diz o escritor e jornalista Marcelo Rubens Paiva.
Há vários outros casos de mistério, procura, sonegação de informação e de luto em suspenso.
Nos últimos dias, novamente os militares voltaram a se movimentar com notas de clubes militares e pressões dos da ativa contra o esclarecimento desses casos.