Acesso à íntegra dos temidos DRs do regime militar, pelo "Estado", revela no entanto que, em sua maioria, eles cuidavam de burocracia
WILSON TOSTA, ENVIADO ESPECIAL/BRASÍLIA - O Estado de S.Paulo
Listados entre os maiores segredos da história recente do País, os Decretos Reservados (DRs) do regime militar viraram instrumentos do último chefe da ditadura, o presidente e general João Figueiredo, para fortalecer o Serviço Nacional de Informações (SNI) e militarizá-lo ainda mais, indica exame de seus textos integrais, obtidos pelo Estado.
Editados, em sua maioria, por um governo que contraditoriamente se apresentava como de abertura, os DRs não podiam ser divulgados no Diário Oficial e, durante anos, foram objeto de especulações que os apontavam como possíveis instrumentos de legalização e organização da repressão política e até da tortura. Sua íntegra, porém, revela uma face que, hoje, mais parece uma ferramenta para manipulação da burocracia militar. O Estado obteve acesso aos DRs por meio de pedidos à Presidência da República e ao Arquivo Nacional.
"Os Decretos Reservados referentes ao SNI são notáveis", analisa o historiador norte-americano Frank McCann, da University of New Hampshire, nos Estados Unidos, estudioso da história dos militares brasileiros e autor do livro Soldados da Pátria. "A pergunta que suscitam é: por que esses decretos foram considerados necessários? Dado que a maioria é datada de 1979 e 1980, em um ponto em que o regime estava afrouxando seus controles, fazem-me pensar no que estava acontecendo para provocar esses ajustes. Como um todo, os decretos mostram uma organização que era autogovernada", destaca o historiador. E prossegue: "Oficiais do Exército estavam no controle, mas pareciam independentes da estrutura de comando da Força."
Os DRs foram criação do período mais fechado do regime, o governo do general Emílio Garrastazu Médici (1969-1974). Nesse período, as organizações brasileiras de guerrilha foram destroçadas e ocorreu a maioria dos casos de tortura, morte e desaparecimento de oposicionistas. Foi Médici que, em 11 de novembro de 1971, pelo Decreto 69.534, determinou que o presidente da República poderia classificar decretos como secretos ou reservados. Seu texto integral seria lavrado em livro especial, a ser mantido na Presidência, e apenas sua ementa (o parágrafo inicial, que expõe do que trata o texto legal) deveria ser publicado, mesmo assim redigido de forma a não quebrar o sigilo do assunto. Ao todo, foram editados 13 DRs (também chamados Decretos Secretos).
Comunidade. "A maioria deles foi editada no governo Figueiredo (1979-1985). E a maior parte era vinculada ao Serviço Nacional de Informações. É a comunidade do Figueiredo", diz a historiadora Maria Celina D"Araújo, da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), lembrando que o último presidente do regime militar havia sido, no governo anterior, de Ernesto Geisel, ministro-chefe do SNI, onde era muito querido.
Entre abril de 1979 e maio de 1982, Figueiredo baixou nove DRs. Cinco versavam sobre o SNI.
Nessa sequência, destaca-se o DR 5, de 12 de julho de 1979, que criou o Fundo Especial do SNI, instrumento contábil destinado a custear "projetos e atividades específicos do Serviço Nacional de Informações, da Escola Nacional de Informações e de outros órgãos (do serviço)". O texto estabelece fontes públicas e privadas para financiamento do fundo e cria contas no exterior, para uso dos agentes.
Outro DR, o número 12, de 1982, criou o Centro de Pesquisas e Desenvolvimento para Segurança das Comunicações, órgão do SNI dedicado à criptografia e até hoje em atividade, na Agência Brasileira de Inteligência (Abin). Outros três (DRs 6, 7 e 11) garantiram postos e prerrogativas militares.
Os quatro restantes do período Figueiredo abordam assuntos militares: criação do 1º Grupo de Defesa Aérea (4), da Estrutura Militar de Guerra (8), do Comando de Defesa Aeroespacial (9)e do Núcleo desse comando (10).
Ironicamente, o criador dos DRs, Médici, editou apenas três - os de números 1, 2 e 3, que mudam denominações ou criam unidades militares. O presidente José Sarney editou o DR 13.
Originalmente, o SNI não era um órgão militar - não era ligado a nenhuma das Forças Armadas -, embora tivesse militares no comando e fosse considerado um ministério militar pelo senso comum. A partir de 1967, aprofundou a sua militarização.
"Foi durante a gestão de Figueiredo que o SNI mais cresceu. Seu orçamento se expandiu, e o órgão virou um superministério, com muitos recursos e pessoal", explica o historiador Carlos Fico, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, autor do livro Como eles agiam, sobre a repressão do regime militar.