Material de treinamento de agentes do FBI continha informações provocativas e preconceituosas sobre o Islã
SALAM AL-MARAYATI
LOS ANGELES TIMES
Nós da comunidade muçulmana americana temos lutado contra as ideias corruptas e falidas de cultos como a Al-Qaeda. Agora parece que precisamos também lutar contra os pseudo-especialistas do FBI e do Departamento de Justiça.
Um conjunto perturbador de materiais de treinamento usados pelo FBI e pelo gabinete de um promotor federal americano veio à tona em julho, revelando a existência de um profundo sentimento antimuçulmano no governo dos EUA.
Se essa questão não for abordada imediatamente, o relacionamento entre a comunidade muçulmana americana e as forças da lei vai se deteriorar - mais um exemplo da inépcia e apatia que ameaçam as pontes cuidadosamente erguidas ao longo de décadas. Não é suficiente tratar o assunto como "uma preocupação absolutamente válida", como disse o diretor do FBI, Robert Mueller, a uma comissão do Congresso neste mês.
O material de treinamento em questão, entregue a agentes do FBI na academia de Quantico, Virgínia - e revelado pela primeira vez pelo blog Danger Room, da revista Wired -, continha opiniões preconceituosas e provocativas a respeito dos muçulmanos, incluindo afirmações segundo as quais os muçulmanos "devotados" seriam mais inclinados à violência, o Islã teria como objetivo "fazer dos costumes árabes do século 7 a nova matriz da cultura americana", que as doações caridosas feitas pelos muçulmanos seriam "um mecanismo de financiamento do combate" e que o Profeta Maomé teria sido "o líder violento de um culto".
A Wired descobriu também uma apresentação preparada em 2010 por um analista contratado pelo gabinete de um promotor federal de justiça na Pensilvânia na qual se fala de uma "'jihad civilizacional' que teria começado nos primórdios do Islã e seria travada atualmente nos EUA por 'civis, júris, advogados, veículos da mídia, meios acadêmicos e instituições de caridade' que ameaçariam 'nossos valores'. A meta dessa guerra seria 'substituir os alicerces judaico-cristãos e liberais, políticos e religiosos da sociedade americana pelo Islã'".
Esse tipo de afirmação infundada e provocativa deve ser deixada para aqueles que partilham da pauta da Al-Qaeda, que prefere manter os EUA num perpétuo estado de guerra contra o Islã. Em outras palavras, a retórica da Al-Qaeda e a desses responsáveis pelo treinamento dos agentes da lei são lados opostos da mesma moeda de ódio.
Se as agências americanas de investigação e policiamento continuarem a empregar uma literatura de treinamento incorreta e fomentadora de preconceitos, a parceria fundamental entre a comunidade muçulmana americana e as forças da lei vai se desintegrar lentamente. De acordo com o Banco de Dados de Incidentes de Terrorismo Pós-11/9 do Conselho Muçulmano de Questões Públicas, essas parcerias se mostraram importantes para preservar a segurança dos EUA. Quase 40% dos complôs relacionados à Al-Qaeda ameaçando o território americano após o 11/9 foram frustrados graças à ajuda dos muçulmanos.
Um exemplo disto é o chamado caso dos 5 de Virgínia, de 2009, quando informações transmitidas pela comunidade muçulmana daquele Estado levaram à detenção no Paquistão de cinco muçulmanos que tinham vindo da Virgínia para se juntarem a um grupo associado à Al-Qaeda. No ano passado, num caso separado, membros de uma comunidade de Maryland alertaram as forças da lei a respeito de Antonio Martínez, que tinha recentemente se convertido ao Islã. Ele foi subsequentemente detido depois de ter supostamente tentado explodir um centro de recrutamento do Exército.
Mais importante: são os líderes muçulmanos, e não os agentes do FBI, que podem combater com mais contundência as destrutivas ideias da Al-Qaeda.
Tenho trabalhado há mais de 20 anos com as forças da lei e com as comunidades muçulmanas dos EUA, e uma das piores consequências dessas sessões de treinamento e do uso desse material é o recuo de um relacionamento vital que precisou de anos para ser construído. Sei que há críticas justificáveis que podem ser feitas a alguns líderes muçulmanos nos Estados Unidos, por não terem promovido o envolvimento cívico de maneira mais agressiva. Mas como podemos convencer as comunidades muçulmanas americanas a se manterem na mesa quando a comida servida está envenenada? Esses manuais de treinamento estão tornando mais difícil para que os muçulmanos americanos cultivem a confiança nas forças da lei. Um treinamento preconceituoso e falho leva a um policiamento preconceituoso e falho.
O verdadeiro desafio atual é devolver essa parceria aos trilhos e, para isto, é necessário que o FBI e do departamento de justiça adotem os seguintes passos: emitir um pedido inequívoco de desculpas à comunidade muçulmana americana; estabelecer um processo de seleção rigoroso e transparente na seleção dos agentes responsáveis pelo treinamento e dos materiais usados; convidar especialistas que não nutram nenhum tipo de animosidade em relação a nenhuma religião para que estes apliquem treinamentos a respeito de todas as comunidades religiosas a todos os agentes das forças da lei. Finalmente, a Casa Branca precisa formar uma força tarefa interagências que possa conduzir uma análise independente do material usado no treinamento pelo FBI e pelo Departamento de Justiça.
As seguintes palavras estão gravadas nas paredes do quartel-general do FBI em Washington: "A mais eficaz arma no combate ao crime é a cooperação... entre todas as agências da lei com o apoio e a compreensão do povo americano".
Peço ao procurador-geral Eric H. Holder Jr. e ao diretor Mueller, do FBI, que assumam suas responsabilidades de líderes diante dessa questão. Caso contrário, a parceria que construímos para conter o extremismo violento será irreversivelmente danificada. A questão que precisa ser respondida é simples: Estamos jogando no mesmo time ou não?
TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL – O Estado de SP