Aliança ocidental encerra a missão na Líbia, a primeira fora da Europa em sua história. Ação militar ofensiva em uma esfera fora de sua área de influência desperta temores sobre futuras interferências em outros governos estrangeiros
Renata Tranches – Correio Braziliense
A Aliança do Tratado do Atlântico Norte (Otan) encerra amanhã, formalmente, sua missão na Líbia. Sai do país com uma vitória militar que consolida sua nova fase de atuação global e ofensiva.
Criada em 1949 para fazer frente à ameaça do bloco socialista do Leste Europeu, o organismo estabeleceu no ano passado um novo conceito estratégico, para atuar em qualquer lugar do mundo. A campanha vitoriosa na Líbia, que terminou com a queda e a morte do ditador Muamar Kadafi, foi a primeira dentro desse contexto. Para analistas consultados pelo Correio, o organismo sai fortalecido militarmente após meses de incursões na nação norte-africana, mas a atuação, marcada por críticas de desrespeito aos direitos humanos e a resoluções internacionais, pode ter aberto um perigoso precedente de interferência em governos estrangeiros.
Comparada à missão do Afeganistão, iniciada em 2001 e com previsão para a retirada total das tropas para 2014, a campanha na Líbia atingiu seu objetivo sem dificuldades e quase nenhuma baixa em sete meses. Avalizada pela Resolução 1973 do Conselho de Segurança das Nações Unidas (CS/ONU), sua primeira tarefa foi a de estabelecer uma zona de exclusão aérea, como forma de “garantir a segurança dos civis” ante à dura repressão do então ditador. O que veio em seguida, porém, com os bombardeios das instalações kadafistas e o apoio aos rebeldes, foi crucial para a queda do regime líbio.
Se, do ponto de vista militar, a missão foi vitoriosa e atingiu os objetivos da Aliança, o mesmo, porém, não se pode dizer quanto ao cumprimento do mandato da ONU, aprovado por 10 votos a favor dos 15 membros do Conselho. Os cinco restantes — entre os quais o Brasil — se abstiveram. As forças ocidentais, na opinião do especialista em defesa da Faculdade de Campinas (Facamp) Alexandre Fuccille, colaborador da Universidade Nacional de Defesa, nos Estados Unidos, desrespeitaram as leis internacionais e foram além da medida, se mostrando pouco eficiente na meta principal, que seria a de dar um escudo de proteção aos civis. Estima-se que pelo menos 60 mil tenham morrido. “A Otan ultrapassou e desrespeitou o mandato, bombardeando palácios onde estavam Kadafi, sua família e aliados, em uma tentativa clara de derrubar o regime”, ponderou.
Efeitos complexos
Ao anunciar o fim das operações na Líbia, o secretário-geral da Otan, Anders Fogh Rasmussen, afirmou, na sexta-feira, que “foi concluída a missão histórica das Nações Unidas de proteger o povo líbio”, qualificando a operação naquele país de “um dos maiores êxitos” da Otan. Em um comunicado enviado ao Correio pelo centro de estudos Nato Watch (Reino Unido), seu diretor, Ian Davis, pondera que a afirmação de Rasmussen pode ser verdadeira, mas questiona onde estariam as evidências. Para Davis, o papel da Otan na libertação da Líbia de uma ditadura fez surgir questões complexas antes e durante a intervenção. Agora, a aliança precisa identificar e articular as lições tiradas nesse processo com “clareza e objetividade”.
O fato de não haver uma ameaça direta contra a Otan vinda das forças líbias fez com que o organismo passasse por dificuldades, já que recebeu cobranças de uma atuação muito cautelosa, algo inusual, de acordo com o especialista em assuntos militares e estratégicos em países árabes Houchang Hassan-Yari, professor do Royal Military College e da Queens University, no Canadá. “Criada para defender os países ocidentais contra a então União Soviética, a Otan teve de aprender muito nessa incursão na Líbia”, afirmou, acrescentando que suas forças não poderiam simplesmente sair bombardeando alvos identificados.
Em artigo publicado pelo The Nations (EUA), o professor emérito de direito da Princeton University e relator especial da ONU, Richard Falk, argumenta que a Otan desrespeitou alguns dos princípios da Carta das Nações Unidas — que dá as diretrizes de atuação do organismo. Para ele, é extremamente preocupante que uma resolução da ONU seja ignorada e que o Conselho de Segurança não tenha reconsiderado o mandato original e censurado a Otan por expandir unilateralmente a natureza de seu papel militar. “Ao ignorar os limites da ONU, a Otan talvez tenha destruído o prospecto para o uso legítimo no futuro do princípio de responsabilidade para proteger.”
Fuccille destaca a mesma preocupação. Na opinião do especialista, na Líbia, a Otan pode ter deixado uma ideia de aliança militar invencível e que, nesse sentido, pode querer entrar em ações em outras partes do mundo, passando eventualmente por cima das instituições multilaterais. “Acho que isso fragiliza muito as instituições internacionais e dá a entender que elas estão a serviço dos países centrais e dos desenvolvidos.”
PARA SABER MAIS
Primeira operação militar ocorreu há apenas 12 anos
A Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) foi criada em 1949, durante a Guerra Fria, como uma aliança militar das potências ocidentais, em oposição aos países do bloco socialista, que formaram depois o Pacto de Varsóvia (extinto em 1991). Em 1999, a Otan realiza sua primeira operação militar em 50 anos de história ao comandar a ofensiva militar na então Iugoslávia, para interromper os massacres da população albanesa na província do Kosovo.
Em agosto de 2003, a Otan assume a segurança de Cabul, capital do Afeganistão, em sua primeira missão fora da Europa. Nos anos 1990, a Otan busca incluir nações que haviam pertencido ao antigo bloco comunista. Em maio de 20002, o Conselho Otan-Rússia permite ao governo russo participar de decisões relativas ao combate ao terrorismo e à proliferação de armas de destruição em massa.
Os atuais membros da Otan são Albânia, Alemanha, Bélgica, Bulgária, Canadá, Croácia, Dinamarca, Eslováquia, Eslovênia, Espanha, Estados Unidos, Estônia, França, Grécia, Holanda, Hungria, Islândia, Itália, Letônia, Lituânia, Luxemburgo, Noruega, Polônia, Portugal, Reino Unido,
República Checa, Romênia e Turquia.
Impacto sobre a situação Síria
O que ocorreu na Líbia após a aprovação da Resolução 1973 do Conselho de Segurança das Nações Unidas tem sido determinante nas discussões sobre quais medidas tomar no caso da Síria. O órgão já se reuniu várias vezes para decidir sobre adoção de sanções ou textos mais duros de condenação ao regime do presidente Bashar al-Assad, mas o exemplo da atuação da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) na Líbia sempre surge como principal argumento dos opositores de tais mecanismos, especialmente entre os dois membros permanentes China e Rússia.
Segundo o especialista em defesa da Faculdade de Campinas (Facamp) Alexandre Fuccille, colaborador da Universidade Nacional de Defesa, nos Estados Unidos, a resistência ocorre porque esses governos ficaram temerosos de que a falta de obediência ao mandato da ONU seja repetida na Síria.
Para ele, esse comportamento das forças ocidentais trouxe maior instabilidade ao sistema internacional.
“Todos ficam temerários pela ausência de regra”, afirmou ao Correio. “O principal exemplo é a morte do (ex-ditador Muamar) Kadafi, que deveria ter sido preso e levado a um tribunal onde poderia ter sido condenado.”
O debate tem dividido o órgão, com Estados Unidos, França e Grã-Bretanha pressionando por mais sanções por um lado, e China e Rússia, endossados por Brasil, Índia e África do Sul, do outro, resistentes a uma ação sem um limite definido. “Na minha opinião, o Brasil tem falado corretamente.
Quem garante que ao aprovar um mandato ele será obedecido? Ele já foi desrespeitado no caso da Líbia. Por que agora seria diferente?”, questiona Fuccille.
O especialista em assuntos militares e estratégicos em países árabes Houchang Hassan-Yari, professor do Royal Military College e da Queens University, no Canadá, tem opinião parecida. Para ele, será muito difícil que o Conselho de Segurança aprove qualquer resolução parecida com a 1973. “Há uma grande pressão internacional com base no que aconteceu na Líbia”, afirmou.
É preciso considerar também que o caso da Síria — onde a ONU estima que mais de 3 mil civis tenham morrido na repressão aos protestos — é diferente, por conta da sua influência na região. Uma instabilidade no país poderia representar o mesmo para os vizinhos, o que também tem sido levado em conta pelos governos ocidentais. (RT)