Crise árabe : Países ocidentais usam operação como marketing para seus equipamentos
Tim Hepher e Karen Jacobs | Reuters, de Paris
Tomada numa feira de aeronáutica em outubro de 2009, uma foto mostra um caça francês Rafale na base aérea de Mitiga, na periferia de Trípoli, na Líbia. Um pequeno grupo de pessoas passeia em torno do caça, com sua cauda iluminada pelo sol do Norte da África. A foto é uma das várias capturadas por fotógrafos de aviação militar no site holandês scramble.nl. Elas destacam uma das ironias da imposição, pelo Ocidente, de uma zona de exclusão aérea nos céus da Líbia. Para destruir a defesa aérea de Muamar Gadafi, as potências ocidentais estão usando os mesmos aviões e armas que apenas alguns meses atrás estavam oferecendo ao líder líbio.
Rafales franceses, iguais aos que estavam na feira em 2009, foram os que realizaram as primeiras missões na Líbia, pouco mais de duas semanas atrás. Um dos alvos teóricos do Rafale são os jatos franceses Mirage da Força Aérea líbia, que Paris recentemente concordou em modernizar.
A operação líbia marca ainda a estreia em combate do Eurofighter Typhoon, um dos concorrentes do Dassault Rafale e que é produzido por Reino Unido, Alemanha, Itália e Espanha. Uma versão desse avião da Força Aérea italiana foi fotografada na feira de 2009 na Líbia.
Duas semanas atrás, a base onde foi realizada a feira na Líbia foi atacada pelas forças ocidentais. Os tempos mudam, as lealdades se modificam, mas as empresas de material bélico sempre encontram compradores para seus produtos.
A Líbia não comprará novos equipamentos por um bom tempo. Mas a zona de exclusão aérea se tornou uma vitrine de primeira linha para outros clientes potenciais de armamentos, pondo em destaque o poder dos jatos de combate e das bombas teleguiadas ocidentais, ou refrescando a memória dos compradores potenciais sobre os sistemas defensivos necessários para repeli-los.
"Isso está se transformando na melhor vitrine de vendas para aviões concorrentes em muitos anos. Mais ainda do que foi o Iraque em 2003", disse Francis Tusa, editor da britânica "Defence Analysis". "Estamos assistindo pela primeira vez numa operação uma competição o Typhoon e o Rafale, e ambos os países querem enfatizar as exportações. A França está especialmente desesperada para vender o Rafale."
O Rafale foi um dos três aviões que chegou à fase final da licitação para reequipamento da Força Aérea Brasileira. A compra, porém, foi adiada após a posse da presidente Dilma Rousseff.
Quase todo conflito contemporâneo, desde a Guerra Civil Espanhola até Kosovo, serviu como teste de poder aéreo. Mas a operação na Líbia para fiscalizar o cumprimento de uma resolução da ONU coincide com uma corrida armamentista - um surto na demanda no mercado mundial de caças, que movimenta US$ 60 bilhões ao ano, e a chegada de uma nova geração de armamento aéreo e marítimo.
Para os países e empresas que estão por trás desses aviões e armas, não há melhor instrumento de vendas do que o combate real. Para forças aéreas às voltas com cortes de orçamento, trata-se de uma briga pelo próprio valor do poder aéreo. "Quando um avião ou arma é empregado em mobilização operacional, isso se torna instantaneamente uma operação de marketing. Ele se torna 'testado em combate'", diz um ex-alto funcionário de exportações de equipamentos bélicos de um país da Otan, falando sob condição de anonimato sobre o tema delicado.
Um porta-voz do consórcio Eurofighter disse nunca ter se envolvido em negociações para a venda de aviões para a Líbia" e que sua presença na feira aeronáutica na periferia de Trípoli em 2009 era na qualidade de membro de uma delegação italiana organizada em nível governamental.
Fontes do setor de equipamento bélico disseram à Reuters que Reino Unido e Alemanha tinham vetado qualquer venda de Typhoons italianos para a Líbia, mas o volume de outros equipamentos militares italianos exibidos demonstrou a proximidade das relações, à época, entre Trípoli e o governo do premiê italiano Silvio Berlusconi.
A França vinha sendo menos tímida em anunciar conversas sobre armamentos com a Líbia, que por um curto período deteve uma opção para compra de jatos Rafale. Uma fonte francesa, que pediu para não ter seu nome divulgado, preferiu não comentar em detalhe as negociações passadas, mas disse que as vendas de armas eram tratadas em nível entre governos.
Feiras aeronáuticas, como a ocorrida na periferia de Trípoli 18 meses atrás, são coisa de rotina do calendário de marketing da indústria de armamentos. Mas, para convencer os compradores potenciais, os equipamentos de defesa têm de ser testados e têm de sobreviver ao que as fabricantes chamam de "guerra quente".
"O teste em campo de batalha é coisa muitas vezes mencionada pela indústria armamentista como importante fator para a promoção de seus produtos para clientes importadores", diz Paul Holtom, diretor do Programa de Transferência de Armas do Instituto Internacional de Pesquisa pela Paz (Sipri, na sigla em inglês).
Uma "guerra quente" dá aos compradores de armas a oportunidade de extrapolar o jargão de marketing e conferir se os recursos alardeados são verdadeiros.
"Todo mundo está voltando os olhos para a Líbia. Ela é, sem dúvida, uma vitrine", disse à Reuters um alto funcionário de uma empresa ocidental de equipamento bélico, que pediu para não ter seu nome divulgado. Um executivo da Dassault, que também solicitou anonimato, disse que o Rafale tinha sido chancelado como "provado em combate" desde que foi utilizado em operações de guerra no Afeganistão em 2007.
O que os compradores e os militares do mundo estão verdadeiramente procurando pode ser muito menos drástico do que um confronto direto entre caças ao estilo do filme "Top Gun", coisa pouco provável na unilateral campanha na Líbia. Em vez disso, segundo executivos do setor, os prováveis futuros compradores estarão ávidos por informações detalhadas sobre a confiabilidade, a capacidade dos aviões de operarem de forma integrada com outras forças ou sistemas e a capacidade das esquadrilhas operacionais de gerar altos números de investidas pelo mínimo de reparos.
As recompensas são enormes. Índia, Brasil, Dinamarca, Grécia, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Omã e Kuait compõem a crescente lista de países dispostos a comprar um ou mais dos caças que estão fazendo investidas sobre a Líbia. O negócio do momento: o plano da Índia de comprar 126 caças, uma encomenda que deverá envolver mais de US$ 10 bilhões.
A confiabilidade, dizem técnicos do setor, tende a ser a característica fundamental para assegurar as exportações desses produtos. Quatro das seis empresas que disputam a venda de aviões para Nova Déli - o Rafale, da Dassault, o Typhoon, do consórcio Eurofighter, o F-16, da Lockheed Martin, e o F/A-18, da Boeing - já atuaram na operação de cumprimento da zona de exclusão aérea nos céus da Líbia. Um quinto concorrente, o Gripen, da Saab, chegou à Sicília na última sexta-feira, pronto para participar da primeira missão de combate aéreo da Força Aérea sueca das últimas décadas. A França também está usando sua nova fragata, da categoria Horizon, e os mais recentes mísseis ar-terra.
Mas não se trata apenas de equipamentos ofensivos. Os conflitos aéreos e o assombro são propagandas gratuitas para empresas que fornecem sistemas de alerta e de defesa antimíssil. "A Líbia é um lembrete de que, se alguém não consegue concorrer no nível das plataformas de ataque, precisa concorrer no nível de sistemas de defesa", diz Siemon Wezeman, professor-visitante sênior da Sipri.
"A Líbia tinha defesas aéreas razoáveis, mas não avançou. Se algum país quer se defender, ele precisa dos aviões ou dos sistemas de defesa. Vamos ver países perguntando a nações como Rússia e China o que eles podem fornecer."
Os sistemas fabricados nos EUA por empresas como a Lockheed Martin e a Raytheon já são alvos de alta demanda pelos países do Golfo Pérsico, para fazer frente à ameaça percebida representada pelo Irã.
Mas convencer os países a comprar armas e equipamentos caros exige mais do que apenas exibição. "Se você atende a 100% das exigências operacionais, você terá ganho apenas 25% da corrida", disse à Reuters o ex-alto funcionário de exportação de produtos de defesa da Otan.
Mensagens diplomáticas confidenciais obtidas pelo WikiLeaks e vistas pela Reuters detalham reiterados esforços dos diplomatas americanos para obter apoio político de alto nível para vendas de caças e de outros equipamentos - esforços que, segundo fontes do setor de defesa, são igualadas pelo intenso lobby por parte de França, Reino Unido, Rússia e outros países.
Uma das mensagens confidenciais, originada por volta do período da feira aeronáutica de 2009 na Líbia, vem da embaixada dos EUA em Nova Déli, e relatava como a Índia, no passado uma das principais compradoras de armas da União Soviética, estava animada com a ideia de adquirir armas americanas, diante de sua comprovada capacidade de combate. "Eles reconhecem a qualidade dos sistemas americanas e ficaram assombrados com a taxa de sucesso em missões atribuída aos aviões americanos comparativamente a seus estoques russos, mais antigos", disse a embaixada a Michele Flournoy, subsecretária de Defesa dos EUA, em outubro de 2009.
Ação militar na Líbia se torna vitrine para mercado de armas
0
Tags: