Em acerto secreto, Brasil se submeteu a inspeções de segurança aérea para receber aval dos EUA à Lei do Abate.
Poder Aéreo
Rio – O Brasil se submete a inspeções de segurança aérea para receber certificação e uma assinatura presidencial dos Estados Unidos (chamada de PD) aprovando sua chamada Lei do Abate, a política de derrubada de aviões suspeitos de narcotráfico no espaço aéreo brasileiro. As negociações entre o Brasil e os Estados Unidos correram à margem do Congresso Nacional e consistem numa ampla gama de informações prestadas pelo Brasil às autoridades americanas, conforme sugere uma série de telegramas enviados pela Embaixada dos Estados Unidos ao Departamento de Estado americano, entre 2004, ano da aprovação da lei, e o ano passado. Os telegramas foram entregues ao GLOBO pelo WikiLeaks e estarão disponíveis, na íntegra, no site do grupo.
Em discussão desde o governo Fernando Henrique Cardoso, a Lei do Abate criou polêmica no Brasil, por ser vista como uma espécie de pena de morte para um país onde essa punição inexiste. Mas também criou mal-estar entre Brasília e Washington, que disse estar preocupada com sua aplicação indistinta, colocando em risco a vida de inocentes. A polêmica foi tornada pública, com declarações da embaixadora dos EUA na época, Donna Hrinak, mostrando preocupação com a aprovação da lei, em junho de 2004.
Meses antes, em março, ela já havia se encontrado com o general Jorge Félix, ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) da Presidência, para apresentar o então chefe do Estado-Maior dos EUA, general Richard Myers. Myers chegara ao Brasil para conversar com as autoridades brasileiras sobre a lei em aprovação. Os EUA pressionavam economicamente os países que não se submetessem aos critérios de seu programa de controle aéreo para combate ao narcotráfico (ABD, Air Bridge Denial Program).
A Lei do Abate, ou Lei do Tiro de Destruição, existe desde 1986, mas foi reeditada num decreto presidencial de julho de 2004. Seu foco não é o terrorismo, mas o combate ao narcotráfico. Há uma série de etapas a serem seguidas até que a Força Aérea receba autorização para destruir uma aeronave hostil, o que nunca deve ocorrer em espaço urbano. O tiro de destruição só pode ser autorizado pelo presidente ou pela pessoa a quem ele outorgar tal responsabilidade. Antes, deve ser dado um tiro de advertência. O Brasil nunca derrubou um avião.
A legislação dos EUA, por sua vez, proíbe que americanos contribuam para a derrubada de aviões em outros países. Se o presidente dos EUA não aprovasse a Lei do Abate, as empresas americanas que fornecem equipamentos para a Força Aérea Brasileira (FAB) responderiam a um processo criminal. O Departamento de Estado chegou ainda a anunciar que suspenderiam a cooperação com o Brasil contra o tráfico de drogas se a lei não satisfizesse os requisitos legais do país.
Dúvidas sobre a defesa de Brasília
Foi nesse cenário que, no final de setembro de 2004, uma delegação do Departamento de Estado se reuniu com integrantes do Ministério da Defesa para discutir os mecanismos pelos quais os EUA teriam acesso às informações do programa. Segundo o telegrama de 2 de agosto de 2004, o então chefe de gabinete do Ministério da Defesa, Fernando Abreu, que liderava o grupo brasileiro, destacou a disposição de o Brasil “passar ampla informação em bases informais (ao governo americano)”, mas ressaltou que qualquer acordo que sugerisse a intrusão do governo americano na soberania brasileira seria um empecilho, “dada a potencial reação negativa do Congresso e da população”.
Pelo que ficou acertado na reunião, o documento seria um compromisso político do governo brasileiro, e não um “acordo vinculante internacional”, de forma a não passar pelo Congresso. “Para Abreu, o limite era qualquer linguagem que indicasse que a troca de notas diplomáticas seria um acordo internamente vinculante, o que necessitaria a aprovação do texto pelo Congresso brasileiro”, escreveu o embaixador John Danilovich.
Em telegrama de junho de 2008, o embaixador Clifford Sobel, que sucedeu Danilovich, afirma que a embaixada está envolvida “com o governo brasileiro para avaliar os procedimentos de segurança concernentes ao seu Air Bridge Denial (ABD) a fim de fazer a Determinação Presidencial (PD)”. O embaixador afirma que terá uma “base tão boa para a certificação” quanto em anos anteriores, mas lembra que não se pode subir a pressão sobre os brasileiros, para quem qualquer tentativa externa de “vigilância seria uma violação da soberania nacional”.
Segundo Sobel, existe uma “troca de notas” entre os dois países desde 2004 e o aumento dos critérios para a certificação seria uma punição que respingaria no ministro da Defesa, Nelson Jobim, “um dos maiores defensores de um melhor relacionamento com os EUA”, além de pôr em risco a cooperação com o Brasil no combate ao narcotráfico. Ao final do telegrama, o telegrama sugere o financiamento de viagens de intercâmbio aos controladores de voo brasileiros aos EUA como forma de argumentar ao Brasil para que abrisse mais suas instalações e para que os controladores, longe de casa, fossem questionados sobre os procedimentos de segurança aérea.
O avião monomotor roubado por Kleber Barbosa da Silva, em março do ano passado, em Luiziânia (GO), chamou a atenção de Sobel. Para o embaixador, o incidente mostra que um terrorista poderia atacar Brasília antes de ser detido. Silva roubou o monomotor, onde colocou a filha de 5 anos. Poucas horas depois, caiu com o avião no estacionamento de um shopping, em Goiânia, a 90 quilômetros de Brasília. A Força Aérea chegou a ativar os processos de abate, mas o avião caiu antes que fosse tomada a providência final, relata Sobel, com detalhes, mencionando os nomes das autoridades brasileiras, como o ministro Nelson Jobim, da Defesa, e o comandante da FAB, Juniti Saito, e afirmando que seguiram os procedimentos “previstos pela embaixada”.
Para Sobel, a escala de decisões ressalta “a vulnerabilidade diante de possíveis ações terroristas, dado que a decisão não teria sido tomada a tempo de deter o piloto caso ele tivesse como alvo outro prédio, incluindo Brasília.”
Diplomatas visitaram centros
Em setembro do ano passado, a ministra conselheira da embaixada Lisa Kubiske relatou que os diplomatas visitaram diversos centros de tráfego aéreo (Cindactas de Brasília, Recife e Manaus) e entrevistaram técnicos para prosseguir na certificação anual que ocorre desde 2004. Ela pede a renovação da PD, defendendo a segurança aérea brasileira. “A Missão está confiante que não houve deterioração nos padrões de segurança brasileiros e recomenda a renovação da PD”, escreve a diplomata. A FAB afirma que a Lei do Abate não necessita de aprovação americana. Mas há os acordos de cooperação entre os dois países.