Soldados invadem barco turco que romperia bloqueio a Gaza, matam ao menos nove ativistas e atraem a ira da comunidade internacional
Rodrigo Craveiro - Correio Braziliense
Os seis barcos carregavam mais de 10 mil toneladas de mantimentos e pelo menos 700 ativistas. O nome da flotilha humanitária era sugestivo: Liberdade. A missão de US$ 3 milhões pretendia testar o bloqueio imposto por Israel e aliviar o sofrimento do povo palestino, ao entregar os donativos na Faixa de Gaza. As bandeiras da Turquia; da Autoridade Palestina (AP) e do movimento Fundação para os Direitos Humanos, Liberdades e Ajuda Humanitária (IHH) não intimidaram as forças israelenses. Foi uma daquelas ações cinematográficas que entram para a história e causam repulsa internacional. Às 4h20 de ontem (hora local), soldados invadiram a embarcação principal, Mavi Marmara. Mataram ao menos nove ativistas e feriram entre 20 e 30.
O governo turco respondeu com indignação, retirou seu embaixador de Telavive e denunciou um "homicídio cometido por um Estado". "Um Estado que cometeu esses crimes perdeu toda a legitimidade ante a comunidade internacional", afirmou o chanceler Ahmet Davutoglu, durante reunião emergencial do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU). A Casa Branca, por sua vez, anunciou que procuraria conhecer detalhes do incidente.
Os membros do Conselho "deploraram" o ataque e exigiram o fim do bloqueio contra Gaza. "Está mais claro do que nunca que as restrições israelenses ao acesso a Gaza têm de ser levantadas, tal como exige a resolução 1.860", disse o representante do Reino Unido, Mark Lyall Grant. Apesar de não terem pedido o fim do embargo, os Estados Unidos propuseram um "alívio" da medida. "Vamos continuar pedindo diariamente aos israelenses que ampliem o espectro de bens e víveres autorizados a entrar em Gaza, para atender toda a gama de necessidades humanitárias da população", comentou Alejandro Wolff, embaixador adjunto dos EUA na ONU. A reação do governo brasileiro chamou a atenção, pelo imediatismo e pelo teor da nota divulgada pelo Itamaraty.
Enquanto violentos protestos ocorriam em Washington, Londres, Atenas, Paris e Peshawar (Pasquitão), o governo de Israel se apressava em justificar o que parecia injustificável. Gravações de vídeo apresentadas por Telavive mostravam homens vestidos de preto descendo de rapel para o convés e sendo atacados por passageiros, com bastões e cadeiras. "Apesar de os meios de comunicação terem apresentado a frota como uma missão humanitária para entregar ajuda a Gaza, ela não tinha nada de humanitária", disse Daniel Carmon, representante israelense na ONU. "Não eram ativistas pacíficos nem mensageiros de boa vontade. Utilizaram cinicamente uma plataforma humanitária para enviar uma mensagem de ódio e implementar a violência", acrescentou. O secretário geral Ban Ki-moon se confessou "chocado" e condenou a violência. "É vital que haja uma investigação completa para determinar como esse banho de sangue ocorreu. Israel deve fornecer uma completa explicação, urgentemente."
Netanyahu
Em visita ao Canadá, o premiê israelense, Benjamin Netanyahu, fez uma veemente defesa da operação militar em águas internacionais. "Eles estavam cercados, foram espancados e esfaqueados, e houve ainda relato de disparos. Nossos soldados tiveram que se defender", declarou. "O que aconteceu nesta manhã (ontem) foi uma violência pré-planejada pelo grupo que atacou as Forças de Defesa de Israel, e não permitiremos qualquer ofensiva por parte de grupos terroristas ou seus apoiadores", emendou Avigdor Lieberman, ministro das Relações Exteriores de Israel.
Por e-mail, o norte-americano Richard Falk — relator especial da ONU sobre direitos humanos nos territórios palestinos — denunciou "uma flagrante violação da lei marítima, que protege a liberdade de navegação em alto-mar". "Como o premiê turco, Recep Tayyip Erdogan, alegou, Israel é culpado de terrorismo de Estado. A operação que produziu ao menos 10 mortes é um crime contra a humanidade",
afirmou. Segundo ele, a presença de ativistas civis desarmados e engajados em uma missão humanitária apenas piora a criminalidade de Israel. "Houve uso excessivo de força desproporcional", admitiu.
Falk não vê qualquer mudança nas relações entre Turquia e Israel, enquanto Netanyahu permanecer no poder. "De fato, pela primeira vez o comando militar turco criticou abertamente Israel, e isto é uma evolução dramática, à medida que os Exércitos dos dois países têm trabalhado em conjunto por muitos anos."
Terroristas
O francês Jean-Charles Brisard, especialista em terrorismo e advogado das vítimas do 11 de setembro de 2001, pensa diferente. "A flotilha carregava militantes e ativistas que conclamavam operações de martírio, antes de embarcarem. A IHH é uma entidade extremista conhecida desde 1996 por seus elos com a rede Al-Qaeda", alertou. De acordo com Brisard, a organização turca têm se engajado na falsificação de identidades e no contrabando de dinheiro para terroristas viajando para Afeganistão, Bósnia, Chechênia ou Iraque. "Israel tinha razões para acreditar que a flotilha possuía propósitos humanitários falsos."
Questionado sobre o impacto do incidente nas relações israelo-turcas, Brisard lembra que elas têm se desgastado depois que a Turquia se reaproximou do Irã. "A complacência de Ancara em relação às organizações extremistas islâmicas é óbvia e contribuirá para danificar ainda mais as relações entre os dois países", disse o francês.
Reação foi pronta e dura
Não foi preciso esperar mais do que o início da tarde para conhecer a resposta do governo brasileiro ao ataque contra a Flotilha da Liberdade: em nota tão rápida na divulgação quanto dura nos termos, o Itamaraty deixou claro o repúdio à violência e a disposição de tomar também medidas práticas. Além de condenar "em termos veementes" a ofensiva, à qual reagiu com "choque e consternação", o Ministério das Relações Exteriores convocou o embaixador israelense, Giora Becher, para transmitir em pessoa as recriminações. O chanceler Celso Amorim instruiu a embaixadora brasileira nas Nações Unidas, Maria Luiza Ribeiro Viotti, a apoiar a convocação de reunião extraordinária do Conselho de Segurança, e acrescentou que esperava "uma declaração forte" contra Israel.
"Não poderíamos ter ficado mais chocados", disse Amorim à imprensa, em Brasília. "É algo que realmente necessita de algum tipo de ação da ONU, porque vai ficar uma marca muito forte", emendou. Em nota divulgada no fim da tarde, a Embaixada Israelense afirmou que o titular da representação reiterou, em reunião com a subsecretária-geral para Assuntos Políticos Vera Machado, que "a flotilha não seguia com uma ação humanitária, mas chegou como uma provocação com o intuito de apoiar o regime ilegal e terrorista do Hamas em Gaza". O embaixador Giora Becher também reiterou que "não existe crise humanitária em Gaza, uma vez que todo tipo de ajuda tem ingressado diariamente na região".
Eu acho...
"Esse incidente não ajudará Israel a legitimar argumentos contra os extremistas. O risco é uma reação excessiva da comunidade internacional, seguindo países árabes. Não creio que isso criará uma crise internacional maior. Há um consenso sobre os objetivos de uma ONG como a IHH no mundo ocidental. Ela é uma entidade extremista conhecida por seus elos com a Al-Qaeda"
Jean-Charles Brisard, especialista em terrorismo