Walter Ceneviva – Folha de S.Paulo
O Presidente da República disse que quem decide a compra de aviões para a FAB é ele e só ele. Será mesmo? Na fria letra da lei, sim, lidos o artigo 84 da Constituição e seus incisos 2 (ele dirige a administração) e 13 (comanda as Forças Armadas), enquadrados na tripartição de poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário). O primeiro executa, o segundo legisla e o terceiro julga, sob o império da lei, em concepção que hoje se acha enfraquecida, confusa.
Exemplo: a Boeing, sabendo do resultado favorável à Dassault, correu para mudar sua proposta. Abriu uma espécie de leilão. Tornou necessária, simultaneamente e em segredo, nova manifestação de todos.
É a lei, sob risco de questionamento em juízo, se o processo licitatório ofender as regras vigentes. Isso sem falar nas rápidas transformações técnico-científicas que precedem, na compra de armas, questões econômicas e políticas.
A manifestação final depende, substancialmente, de se saber a fonte do monopólio da força. A fonte da decisão é o povo (Constituição, art. 1), enquanto instituição permanente, não transitória, cujos muitos efeitos repercutirão durante dezenas de anos. Os vetores de influência sobre a decisão final estão presentes em países cujas economias atuam em todo o planeta, caso atualíssimo dos Estados Unidos pós-Bush e em nações dependentes desse foco irradiador.
No outro lado da estrada, a paisagem é igual, com novos personagens. No comunismo antigo, seus líderes chamavam atenção para "tentáculos do polvo capitalista". Hoje, quando, nas tempestades, o vendedor de guarda-chuvas chineses grita a oferta ("déis real, dotô! Só déis prá num moiá!"), põe à mostra novos tentáculos.
A internet e a eletrônica alimentam o polvo indiano. O comércio é uma das formas pelas quais os polvos fogem da incidência plena da intervenção direta da força estatal.
Ou seja, ainda que a ordem legal interna interfira nos negócios da nação, há filiais e ramificações, em outros países, nos quais a força originária se abate, sofre desvios. Não é a velha globalização, mas o produto mais sofisticado, da transnacionalização.
Nesse perfil, o monopólio interno da força, pelo Estado, deve ser revisto, porque o Executivo, poder que manda, não escapa dos influxos externos, como se viu quando a estrutura legal e jurídica não impediu os maus efeitos da ordem econômica concentrada na obtenção do lucro.
O administrador privado dos grandes bancos e corporações tem de satisfazer seus controladores e acionistas, situados nas nações de sua sede. A divindade do lucro gerou maus efeitos, a crise financeira que estamos vivendo. O Estado continua personagem importante, mas se mostrou incapaz de conter o chamado capitalismo selvagem e até de prever o tsunami que se avizinhava .
O leitor dirá que muitos assuntos diversos se misturaram, desde o início, defeito ainda mais condenável se considerarmos que a coluna se destina, sobretudo, aos princípios jurídicos aplicáveis.
A leitura pode gerar pessimismo quanto à correção dos defeitos de hoje, mas, ao contrário, quer esclarecer que, na missão social destes tempos, a força do Estado deve ser orientada cada vez mais pela força institucional da cidadania ativa. Devemos estar atentos.