Brasil tem que ser "nação rebelde", diz Mangabeira Unger

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Escanteado nos pactos após a 2ª Guerra, país precisa assumir protagonismo, afirma ministro de Assuntos Estratégicos

Intelectual identifica maior interesse dos brasileiros em questões diplomáticas, o que aponta como um traço das grandes democracias

Samy Adghirni – Da Reportagem Local

Embora tenha vocação natural para o protagonismo geopolítico, o Brasil só agora começa a buscar uma posição de destaque no sistema internacional.

A avaliação é de Roberto Mangabeira Unger, professor de direito da Universidade Harvard que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva escolheu, em 2007, para comandar a então recém-criada Secretaria de Assuntos Estratégicos.

Em entrevista à Folha, por telefone, o ministro disse que o descompasso entre a aspiração do Brasil e sua inserção real remonta ao fim da Segunda Guerra (1939-1945), quando o país ficou fora dos pactos entre os vencedores, que criaram o sistema global hoje em vigor.

O fortalecimento da projeção brasileira, para o ministro, passa pela aliança estratégica com Rússia, Índia e China - demais integrantes do Bric, grupo de emergentes que faz sua primeira cúpula em 16 de junho, em Ekaterinburgo (Rússia). Mangabeira Unger é o coordenador brasileiro do Bric.

POTÊNCIA ÓRFÃ

A China e, principalmente, a Rússia saíram como vitoriosas da Segunda Guerra Mundial. Nós, apesar da participação no conflito, não fomos classificados como tal. O Brasil é obrigado a ser uma nação rebelde, pois somos órfãos dos acordos acertados [entre as potências] após as duas guerras mundiais.

DIPLOMACIA EM ALTA

Está surgindo no Brasil algo típico das grandes democracias, que é o desmoronamento das barreiras entre política externa e interna. A diplomacia virou um debate nacional.

Nas grandes nações, projetos estratégicos de desenvolvimento importam mais do que temas de política interna. Países poderosos sempre ponderam se a ordem mundial facilita ou inibe suas metas estratégicas e não veem a política externa como um ramo do comércio. As potências seguem agenda geopolítica que transcende objetivos puramente econômicos. Aliás, o comércio segue o poder, e não o contrário.

SIMPATIA UNIVERSAL

Somos uma democracia - apesar de falhas - vibrante e fomentada na unidade nacional. Além disso, não temos adversários. De todos os grandes países da história moderna, somos o menos beligerante e o que teve menos contato com guerras. Assim, desfrutamos de uma simpatia quase universal. Mas isso não nos exime de nos defender. Há uma relação íntima entre defesa e diplomacia. Não vejo risco de nos envolvermos numa guerra. Mas é melhor para o mundo que os fatores da paz possam se defender.

Para ministro, aliança com Rússia, Índia e China redefinirá cenário geopolítico

Roberto Mangabeira Unger defende a implementação de uma nova ordem de comércio global, que leve em conta a diversificação dos centros de poder mundiais. Para ele, os arranjos internacionais gestados pelos países emergentes precisam ser institucionalizados. “Há obstáculos, mas só a discussão já é uma revolução.” (SA)

ANSEIOS

Como membros do Bric, buscamos a institucionalização dos arranjos internacionais acarretados pelas forças emergentes. Nem o G20 nem o G8+5 [grupo dos oito países mais ricos e os cinco maiores emergentes], por exemplo, foram institucionalizados e nem foi definida a sua representação nas organizações já existentes, que devem ser reconstruídas para serem mais hospitaleiras em relação aos emergentes.

Também é preciso implementar uma nova ordem de comércio à luz de um pluralismo que leve em conta a diversificação dos centros de poder.

Esses assuntos são um temário, não uma planilha. Há muitos obstáculos e algumas dissonâncias entre os Bric. Mas o fato de termos essa discussão já é uma revolução. Nosso denominador comum é a visão de um mundo pluralista e aberto à experimentação. Ninguém alcança um alvo que não vê. Pode haver uma tentação dos EUA de encarar a movimentação dos Bric como ação de contrabalanceamento ou contenção. Seria um equívoco pensarem assim.

MULTILATERALISMO

Hoje em dia, quando os EUA e seus aliados se julgam ameaçados e não obtêm o que querem da ONU, eles saem do sistema e criam as suas “coalizões dos dispostos”. Isso é muito perigoso. Apesar de seus defeitos, a ONU é o único [sistema multilateral válido] que temos.

O sistema de segurança internacional acaba sendo como um balão de ar, enchido ou esvaziado em função dos interesses das grandes potências. É normal que uma potência busque se defender, mas ela não pode passar por cima do único sistema que valha.

É preciso construir um novo adensamento do sistema de segurança que resguarde os interesses das grandes potências, mas que também aumente o custo político para quem transgredir as regras.

DESARMAMENTO

O desarmamento nuclear é uma questão crucial. É muito positivo que o novo governo americano tenha se comprometido tão claramente com esse objetivo. Nós, apesar de sermos maiores em PIB e população do que a Rússia e de estarmos na vanguarda tecnológica nuclear, não queremos ter armas atômicas. O Brasil é a única potência emergente que renunciou a esse poder.

HEGEMONIA DO DÓLAR

É preciso rever o papel do dólar americano como moeda de reserva. A China está desconfortável e deixou claro que não permitirá que a economia mundial fique presa às vicissitudes dos altos e baixos de uma grande potência como os EUA.

Parte do problema é inevitável. Os EUA importam boa parte das exportações do mundo, e quando a economia americana vai mal, todos sofrem. Mas não podemos depender da moeda de reserva de um único país. Por outro lado, não se pode querer o oposto, uma burocracia global nos moldes do Banco Central Europeu.

SIMETRIAS BRASIL-EUA

O Brasil é o país mais parecido com os EUA, embora essa semelhança não seja sabida nem lá nem cá. Ambos são democracias grandes e desiguais, nas quais as pessoas comuns julgam que tudo é sempre possível, e ambos estão buscando se reconstruir. As relações bilaterais são cordiais, mas surpreendentemente restritas.

As divergências, principalmente as comerciais, sempre acabam destacadas. Os EUA querem vender equipamento militar, mas nós buscamos desenvolver nossa própria tecnologia. Eles querem que ajudemos a monitorar algumas regiões, mas nós não temos interesse em policiar o mundo.

Conheço pessoalmente muitos membros do novo governo americano e sei do imenso potencial que nós temos de reconstruir uma relação baseada no engajamento crítico e que abra novas frentes de parceria.

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