O suicídio do subtenente José Ronaldo Amorim, em plena Esplanada dos Ministérios, levanta suspeitas sobre a existência de uma máfia dentro da força
Época
Rodrigo Rangel
Adriano Machado
Passava pouco das 11 horas da Quarta-feira de Cinzas quando um tiro de pistola 9 milímetros ecoou no corredor do 3º andar do prédio do Comando do Exército, em plena Esplanada dos Ministérios, em Brasília. Sobre o piso de madeira, caiu o corpo do subtenente José Ronaldo Amorim, 46 anos completados na semana anterior. Para a Polícia Civil do Distrito Federal, chamada minutos depois, não há dúvida: foi suicídio. O subtenente Amorim, como era conhecido, disparou contra a própria cabeça, com a arma oficial que usava em serviço.
À primeira vista, poderia parecer mais um entre os recorrentes casos de suicídio nas fileiras do Exército. Mas não era. O subtenente Amorim respondia a um inquérito policial militar explosivo. A investigação, que corre em segredo, destina-se a mapear o funcionamento de uma máfia, com
personagens de dentro e de fora do Exército, montada para desviar armas que deveriam estar bem protegidas nos depósitos da corporação.
As armas desviadas, em sua maioria, são aquelas recolhidas nas campanhas de desarmamento promovidas pelos poderes públicos. Por lei, elas devem ser entregues ao Exército para ser destruídas. O problema é que nem todas são inutilizadas. A máfia em atuação na caserna arquitetou um eficiente esquema para retirar armas dali e repassá-las para o mercado negro, em troca de dinheiro. É um desvio duplamente perigoso. As armas deveriam sair de circulação, contribuindo para a redução da violência. Mas acabam voltando para as ruas – e muitas delas vão para as mãos de traficantes de armas que abastecem o mundo do crime.
ÉPOCA ouviu militares que conhecem por dentro o funcionamento da máfia, que teria a participação também de oficiais. Dentro do Exército, o esquema tem como endereço as seções do SFPC, sigla que denomina o Serviço de Fiscalização de Produtos Controlados. Espalhadas por todo o país, essas seções têm a tarefa de orientar, controlar e fiscalizar desde a fabricação até o transporte de armas, munições e explosivos em geral – atribuições exclusivas do Exército.
O desvio se dá em duas frentes. Uma delas é a retirada, pura e simples, de armas e munições guardadas nos depósitos para onde são destinados os carregamentos de armas recolhidas nas campanhas de desarmamento. A outra se dá de maneira um pouco mais sofisticada. Antes de registrar em computador as armas que chegam ao setor, e que deveriam ser igualmente destruídas, os militares envolvidos simulam doações a supostos colecionadores, autorizados pelo próprio Exército. É uma maneira de fazer com que a arma volte a circular, inclusive com ares de legalidade. O colecionador pode repassar a arma, em seguida, a terceiros. Há casos em que os colecionadores que recebem as armas são militares. “O destino final dessas armas a gente sabe bem. Não precisa ir muito longe para descobrir como chegam armas para os traficantes nos morros do Rio de Janeiro”, afirma um dos militares entrevistados por ÉPOCA.
Há quase três décadas no Exército, o subtenente Amorim trabalhou durante dois anos no SFPC da 11ªRegião Militar, que tem sede em Brasília e jurisdição sobre Goiás, Tocantins e o Triângulo Mineiro, além do Distrito Federal. Seu envolvimento com o desvio de armas foi revelado durante uma inspeção interna feita pelo Exército em Goiânia, no ano passado. O subtenente recebera a informação de que, no SFPC goiano, havia um lote de armas entregue pela família de um capitão aposentado recém-falecido.
Com a ajuda de um colega da seção, Amorim registrou em seu nome uma suposta doação das armas. Para isso, usou de uma das artimanhas do esquema: ele próprio tinha seu registro de colecionador.
Constatada a fraude, o subtenente foi, em seguida, afastado do SFPC. Estava exercendo funções burocráticas na seção de saúde do Comando Militar do Planalto, que funciona no mesmo prédio do comando do Exército.
A descoberta do desvio originou a abertura de um inquérito policial militar. De pronto, a investigação passou a mirar não apenas no subtenente Amorim, mas também no colega de Goiás que lhe repassou as armas, o subtenente Piccoli. “É a tentação do dinheiro fácil”, diz um general que acompanha o desenrolar da investigação. “O sujeito às vezes está endividado e vê uma oportunidade de ganhar um dinheiro extra cometendo esse tipo de crime.” Parecia ser exatamente esse o caso do subtenente Amorim.
Ele acumulava dívidas na praça. Estava com o nome inscrito nos registros de cheques devolvidos por falta de fundos. A investigação interna do Exército mostrou que o esquema de desvio de armas lhe rendeu um complemento na renda.
“Temos elementos que mostram que, só nos últimos meses, ele vendeu R$ 14 mil em armas desviadas”, afirma o general. O soldo de um subtenente é de R$ 4.500 brutos.
Originário da arma de cavalaria e pernambucano de nascimento, o subtenente Amorim, casado, pai de três filhos, carregava no uniforme o brevê de paraquedista, prova de que passou pelos piores testes de resistência física e psíquica da caserna. Mas a investigação se transformou num fardo pesado demais para ele, que passou a enfrentar um conflito pessoal, segundo o depoimento de amigos. Por um lado, Amorim já tinha percebido que o inquérito militar o havia emparedado. Seu emprego no Exército estava a prêmio. Por outro, movido por um dever de lealdade, Amorim não queria delatar outros militares e civis envolvidos nem se submeter ao risco de enredar oficiais na investigação. Segundo pessoas próximas a ele, esse era o caminho que lhe restava caso quisesse evitar punições maiores. Dias antes de se suicidar, o subtenente conversou sobre o assunto com amigos civis e militares. Mostrou documentos e cópias de e-mails que, em sua visão, poderiam ser seu resguardo. A alguns desses amigos, o subtenente entregou cópia dos papéis.
ÉPOCA teve acesso ao material. Entre os e-mails, há alguns que, além de explicitar a participação do subtenente no esquema, indicam nomes de outros envolvidos.
Um dos interlocutores frequentes do subtenente é um colega de farda identificado como André Gama, que havia trabalhado no SFPC num passado recente. Nas mensagens, Gama demonstra conhecer bem o funcionamento do esquema. Em dezembro do ano passado, o subtenente Amorim escreveu ao amigo.
“Estou passando por maus momentos”, dizia, ao informar o amigo da existência da investigação. Na resposta, Gama sugeria que Amorim partisse para o contra-ataque. “Lembra do caso que [sic] a Polícia Federal apreendeu mais de 6 mil (seis mil) cartuchos com um estrangeiro e envolvia um coronel da reserva e um general?????”, escreveu ele. “O caso era para ser enviado para a auditoria militar etc., mas o general Davi não quis enviar”, emendou.
A ideia era contra-atacar com o argumento de que, quando as irregularidades envolvem oficiais de alta patente, as investigações não prosseguem. O general Davi a que o militar se refere é Paulo Davi de Barros Lima, comandante da 11a Região Militar, a quem o subtenente estava subordinado. O episódio em questão se deu em 2007. Diz respeito à importação de munições, operação que também está submetida ao crivo do SFPC. Em nota, o Exército informou que o general Davi não levou o caso adiante porque a Polícia Federal teria concluído depois que não houve irregularidade na importação das munições.
As mensagens também revelam ligações do esquema com empresas que vendem e transportam armamentos. Uma delas é a Kammel, uma casa de produtos para caça e pesca de Taguatinga, cidade-satélite de Brasília, que também vende armas e munições. Em tom de camaradagem, o subtenente trocava e-mails com o dono da empresa, Ismail Kamel Abdul Hak, que lhe repassava incumbências a serem resolvidas na seção de produtos controlados do Exército, como liberações para transporte de armamentos. “Não tive ligação espúria com quem quer que seja. Minha loja é autorizada pelo Exército. O Amorim era um amigo e era muito honesto”, diz Hak.
Os papéis revelam a existência de uma azeitada rede de troca de favores – entre os militares envolvidos no desvio de armas e entre eles e gente de fora do Exército. O problema é crônico. O Exército tenta implantar um rodízio permanente no SFPC para evitar os desvios. Mas não funciona – e, às vezes, o próprio comando deixa de punir para evitar maiores desgastes. Um caso exemplar é do subtenente André Mitchell. Quando passou pelo SFPC, anos atrás, ele também esteve no centro de suspeitas. Mas não chegou a ser punido. As razões aparecem numa gravação em poder do Ministério Público Federal. A um subordinado, que gravou a conversa, o general Adhemar da Costa Machado, na ocasião comandante da região militar de Brasília, diz que preferiu mudar o subtenente de unidade para preservá-lo. “O Mitchell tem uma caminhonete que nós não temos. Ele diz que o irmão dele deu. Mas o pessoal invejoso diz:
‘Olha lá a caminhonete do Mitchell’”, afirma o general. “Eu, general, não tenho condições de ter uma caminhonete, juro para você. Agora, ao longo dos dois anos que serviu aqui, o Mitchell cumpriu a missão, foi um curinga (...) Eu tirei o Mitchell para preservá-lo”, diz Adhemar. Trabalhei no SFPC por 14 anos e minha ficha só tem elogios. A minha caminhonete é uma Blazer velha”, diz o subtenente Mitchell.
O caso do subtenente Amorim pode mostrar que as providências para evitar os desvios nem sempre seguem as mesmas regras. “Ele estava sendo perseguido indevidamente. Essa história envolve gente graúda. Queremos ver agora se também vão atrás desses”, disse a ÉPOCA um familiar do subtenente. Na nota enviada à revista, o Comando Militar do Planalto diz que tem sido rigoroso. “O Exército não pactua com nenhum tipo de irregularidade e apura todas as denúncias com o máximo rigor”, diz o texto. Agora, com o problema exposto, os desvios deverão ser apurados também pelo Ministério Público Federal. Será uma boa oportunidade para saber se serão investigadas apenas denúncias contra um militar morto ou se o problema do desvio de armas no Exército será solucionado.