No Uruguai, Congresso vota contra lei que anistiou acusados de tortura na ditadura. Na Argentina, as Forças Armadas serão julgadas por civis
Joana Duarte
O Uruguai e a Argentina voltaram a colocar sobre a mesa um assunto que paira irresoluto nas políticas do continente há mais de duas décadas – desde os tempos da transição da ditadura para a democracia. A decisão do Congresso uruguaio, na quarta-feira, ao votar pela inconstitucionalidade da chamada Lei de Caducidade, que anistiou militares e policiais acusados de tortura durante o período da ditadura militar, abre caminho para a reabertura de outros casos de violações a direitos humanos cometidos pelo regime, segundo os próprios parlamentares. Na Argentina, a partir de hoje, desaparece completamente a proteção da jurisdição penal militar, entrando em vigor uma nova lei pela qual militares que cometerem delitos em tempo de paz serão julgados, como qualquer outro cidadão, pelos tribunais civis comuns.
Aprovada durante uma sessão conjunta de deputados e senadores por 69 votos a dois, a decisão do legislativo uruguaio ampara um pedido pessoal do atual presidente, Tabaré Vázquez, para que a lei fosse declarada inconstitucional no caso específico de Nibya Sabalsagaray, uma jovem comunista militante torturada até a morte em 1974 dentro de um quartel militar, após ter escrito a frase "abaixo a ditadura" em um muro.
Já a reforma penal militar na Argentina vem junto a outras iniciativas recentes do governo para modificar visceralmente a mentalidade da formação profissional dos militares, que historicamente se beneficiavam de jurisdição penal mais branda, sem independência judicial, que permitia, por exemplo, que integrantes dos tribunais militares não fossem advogados.
– Considero o fim da anistia uma atitude corretíssima do Congresso do Uruguai, assim como deve ocorrer na Argentina ou no Chile, porque nestes países as leis de anistia foram concedidas pelos próprios militares no fim da ditadura, ou seja, uma espécie de autoanistia – afirmou Roberto Freire, atual presidente do Partido Popular Socialista (PPS).
– No caso do Brasil, precisamos ter mais cuidado porque nossa Lei de Anistia foi sancionada pelo Executivo depois de aprovada pela Assembleia Nacional Constituinte de um governo democrático.
Freire entende que quando a Lei da Caducidade foi aprovada pelo Congresso do Uruguai, em 1986, o legislativo sofria fortes pressões dos militares, que à época simplesmente se recusavam a se apresentar à Justiça para explicar crimes cometidos durante o período da ditadura.
Além de respaldar o pedido do presidente uruguaio, a decisão do Congresso atendeu também a um pedido da Suprema Corte de Justiça, num momento em que se prepara para julgar o caso de Nibya apresentado pela promotora Mirtha Guianze. A partir da decisão do legislativo, o STJ uruguaio terá um pouco mais de 100 dias para se pronunciar sobre a ação de incontitucionalidade proposta contra a Lei de Caducidade.
A palavra final sobre a lei deverá vir da Suprema Corte de Justiça, enfatizam criminalistas, numa decisão que poderá abrir caminho – na opinião de parlamentares da oposição e do governo – para a reabertura de outros casos de abusos cometidos durante a ditadura.
Mas para Daniel Chasquetti, professor de ciências políticas da Universidade da República, em Montevidéu, a declaração do Congresso e o eventual julgamento da Suprema Corte valem para um único caso e não geram precedentes jurídicos no Uruguai.
– O que certamente deve ocorrer em novos casos serão os advogados de familiares de vítimas da ditadura contenderem a inconstitucionalidade da lei de anistia para situações específicas. Embora a decisão da Suprema Corte sirva apenas para um único caso, se a corte declarar o caso de Nibya
inconstitucional, vai haver centenas de pedidos semelhantes e provavelmente, todos obterão a mesma declaração.
Chasquetti considera esta a consequência politica mais importante de todo o processo, isto é, a consolidação da posição da Suprema Corte, e destaca também que a decisão do Congresso já pode ser vista como uma condenação contundente e direta ao Exército uruguaio:
– Sem dúvidas, isso é uma crítica vigorosa às Forças Armadas que agora se encontram desamparadas pelo legislativo e ameaçadas por uma provável decisão desfavorável da Suprema Corte.