''Defesa trata anistia pelo viés jurídico, e não pelo viés político''
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João Bosco Rabello, Tânia Monteiro e Rui Nogueira
Em entrevista ao Estado o ministro da Defesa, Nelson Jobim, condenou a tentativa política de revisão da Lei de Anistia e disse que o debate sobre sua abrangência criou uma falsa disputa entre defensores de torturadores e dos torturados. Ex-presidente do STF e um dos artífices da Constituição de 88, Jobim deixa claro que o tema o entedia tanto quanto as queixas militares com relação ao Ministério da Defesa. "Não me emociono com isso", diz. Para ele, se a anistia está politicamente consolidada, sua discussão fora do ambiente do Poder Judiciário é perda de tempo.
Já o comando civil das Forças Armadas é irreversível. No primeiro caso, diz , o Ministério da Defesa adotará uma postura de absoluto viés jurídico. Em relação à reação militar à Estratégia de Defesa Nacional (END), materializada numa carta com críticas do ex-comandante Militar do Leste, general Luiz Cesário, distribuída entre os oficiais , o ministro chega a dizer que nem leu o documento. "São vozes esporádicas, residuais", minimiza. Na avaliação de Jobim, a vulnerabilidade do sistema militar brasileiro é outra: dependência externa de bens e tecnologia.
O Ministério da Defesa vai completar uma década em junho. Está consolidado ou ainda há resistências nos comandos militares?
A fase de transição está encerrada. Os militares saíram da política e os civis assumiram. A lealdade das Forças Armadas ao Poder democraticamente constituído está consolidada e esse foi um processo que começou no governo José Sarney (1985-1990). Do ponto de vista político, o Ministério da Defesa está consolidado, mas não está consolidado do ponto de vista administrativo, da gestão. Mas não há mais recuo. Não dá mais para pensar na volta ao modelo anterior e termos um ministério do Exército, outro da Marinha e outro da Aeronáutica, além de um Estado-Maior das Forças Armadas (EMFA). Ou, voltando ainda mais no tempo, ao Ministério da Guerra.
Mas, vez por outra, um militar de alta patente critica a criação do Ministério da Defesa. Como o general Luiz Cesário, que acabou de deixar o Comando Militar do Leste e, ao passar para a reserva, criticou a pasta.
Pode haver vozes esporádicas contra. Isso é (manifestação) residual, isolada. São pontos de vista individuais, que precisamos respeitar.
O que vem depois da transição?
Entramos na consolidação do ministério, etapa iniciada com a elaboração da política de defesa (Estratégia Nacional de Defesa). Vamos discutir agora a elaboração da política militar, com a organização, preparação e atualização das Forças Armadas. Há coisas incipientes, como a modelagem das tarefas orçamentárias e as compras conjuntas. Mas tudo isso é um processo.
Como é que foi conquistada essa lealdade dos militares?
O que asseguramos foi a exclusão da intervenção militar nas decisões políticas. Isso veio com redução da presença militar nos cargos da administração pública direta e indireta e a perda do poder de veto.
De onde vinha esse poder político dos militares e por que agora, legalmente, não existe mais?
Desde a Carta de 1891 os militares entenderam que eles tinham uma destinação constitucional para garantir a lei e a ordem. Por uma definição deles mesmos, sem intermediação dos poderes políticos. Em 1987, na Constituinte, houve uma discussão e se manteve o mesmo modelo (fiadores da garantia da lei e da ordem), mas se estabeleceu uma diferença: os militares só agem por iniciativa dos Poderes da República. Antes, os próprios militares é que decidiam se podiam intervir ou não. Na Constituição de 88, submetemos o poder militar aos Poderes constituídos, mas não quisemos saber da questão militar porque esse é um assunto vinculado à repressão política. Os civis não assumiram a parte que lhes cabia na Defesa porque os objetivos para as Forças Armadas precisam ser definidos e escritos pelos governos. Daí vem a redução contínua do orçamento, os equipamentos começaram a ficar obsoletos. Como a relação era só para resolver problemas pontuais, as decisões eram todas dos militares.
Em que fase está a aplicação da Estratégia Nacional de Defesa?
Com a política definida, nós estamos agora fechando prioridades. Os militares quase sempre falam na falta de dinheiro. Mas esse não é o problema. A questão é saber o que tem de ser feito, considerando a capacidade do País. O problema do nosso Exército é a fronteira oeste, mas as grandes bases da Força estão no leste. A decisão de política pública está tomada, a Amazônia é a prioridade. O módulo de fixação do Exército na região é a brigada, com mobilidade dada pelos pelotões de fronteira e soldados com ação flexível, capacidade para o litígio convencional, mas também preparados para o confronto irregular, não-convencional. Estamos, portanto, definindo agora a política militar. Os civis tomam as decisões e os militares fazem as opções estratégicas para cumprir as decisões.
Por exemplo?
No caso da ajuda à Colômbia (para resgate de reféns em poder da guerrilha das Farc), chamei o general Enzo (comandante do Exército) e pedi um planejamento para uma operação de salvamento e resgate. Eu não intervim no modus operandi. Mas a decisão de ir era uma decisão do governo.
Chegaram a me dizer que os soldados brasileiros não poderiam ter armas. Aí eu disse: negativo. Nossos militares terão, sim, armas de defesa pessoal. O Exército conhece a Amazônia e deu um belo resultado.
Qual é hoje a grande vulnerabilidade do sistema de defesa brasileiro?
Falta de capacitação nacional, pois todos os nossos insumos são obtidos no exterior. Mas o governo não tem dinheiro para garantir encomendas para as Forças, encomendas num volume que ajude a sustentar um indústria de defesa forte e desenvolvida. Se não tiver dinheiro nós vamos demorar a reduzir a vulnerabilidade.
Como o governo vai ajudar a desenvolver, por exemplo, o cargueiro KC-390, projeto da Embraer?
Nós vamos fazer encomendas do KC-390. Investiremos por meio da garantia de encomendas. E já conversei com o Juan Manoel Santos (ministro colombiano da Defesa) para ver se a Colômbia também faz encomendas garantidas.
Em meio à consolidação do Ministério da Defesa, um assunto atravessou o coro: a discussão sobre a validade e alcance da Lei de Anistia. De que lado o sr. fica?
O assunto está no Supremo (Tribunal Federal). É de lá que virá a interpretação constitucional. Temos de sair da dicotomia equivocada do revisionismo interpretativo, que divide o debate entre os que defendem os torturadores e os que defendem os torturados - não é isso que está em jogo. Essa dicotomia é a mesma em que estamos caindo no debate sobre a Amazônia: de um lado os desenvolvimentistas, que querem derrubar a Amazônia; do outro lado, os preservacionistas, que querem preservar a Amazônia. E quem está no meio são os 25 milhões de pessoas que precisam sobreviver.
Mas qual é sua visão sobre o alcance da Lei da Anistia?
No fim dos anos 70 foi tomada uma decisão política traduzida em lei. Essa lei está sujeita a interpretações, e o órgão competente para interpretar é o Supremo Tribunal Federal. O Ministério da Defesa trata o assunto pelo viés jurídico, e não pelo viés político. Não tem outro caminho. Eu nunca fui emocionado.
O assunto da demarcação da Reserva Raposa Serra do Sol também está no Supremo. É assunto resolvido para os militares?
O voto do ministro Carlos Alberto Direito já tem número suficiente de apoios (8 dos 11 votos possíveis). As 18 regras que ele (Direito) explicitou são a definição do estatuto jurídico da terra indígena.
Nós não temos nação indígena, ou, dizendo de outra forma, nós não temos índios brasileiros, mas brasileiros índios. Habilmente, o STF está aproveitando o julgamento para definir que a terra indígena é de propriedade da União, usada pela população indígena. Definir que o subsolo é da União, mas que na exploração eles vão ter uma participação. Definir que as Forças Armadas não precisam pedir licença para ninguém, nem para a Funai, para entrar em terra indígena. Definir que as terras indígenas também estão sujeitas a questões ambientais, não permitindo negócios em que os índios derrubam a mata para servir às madeireiras. As leis de proteção ambiental valem para todos.
Todo mundo diz que o sr. não fez nada de concreto para acabar com o caos aéreo, apesar das muitas reuniões, planos e promessas. Mas é fato que melhorou um pouco o ambiente nos aeroportos. Nem a briga para aumentar o espaço entre os assentos o sr. ganhou. O que houve?
A verdade é que as agências tinham uma agenda própria, os órgãos de controle da Aeronáutica tinham outra agenda. Era um desastre. Hoje está tudo coordenado. A Anac prometeu examinar a questão dos assentos na próxima (nesta) semana. Vai ter um resultado.
O que está havendo na briga envolvendo os aeroportos do Rio (Santos Dumont e Galeão), o governador Sérgio Cabral e a Agência Nacional de Aviação (Anac)?
O setor político aprovou uma legislação de criação da Anac, mas não sabia o que estava aprovando. A Anac tem duas liberdades legais: para definir tarifas e para definir rotas. Com a ajuda dos órgãos técnicos, a Anac define a capacidade dos aeroportos. A agência está discutindo agora quem entra e quem sai (no Santos Dumont), porque você não pode deixar que um aeroporto fique eternamente nas mãos de alguém. É isso o que está acontecendo.