Documentos do Exército revelam cruamente como pracinhas brasileiros atormentados por condições precárias de saúde e pelo analfabetismo agiram com heroísmo na 2ª Guerra Mundial
Edson Luiz
Quando decidiu ir à 2ª Guerra Mundial, o Brasil não conhecia as dificuldades que iria enfrentar. Não apenas à frente dos campos de batalha, mas já a partir da organização de seus contingentes – marcados pelas precárias condições de saúde e sociais de grande parte da tropa. Relatórios secretos dos generais João Batista Mascarenhas de Morais e Eurico Gaspar Dutra, obtidos pelo Correio, mostram a realidade do país entre 1942 e 1945, além do cotidiano dos nossos combatentes. Nos documentos, Mascarenhas de Morais, comandante da Força Expedicionária Brasileira (FEB), relata a principal dificuldade enfrentada para tomar o Monte Castelo, um episódio que quase dizimou as tropas brasileiras, mas que acabou tornando-se um dos principais feitos da FEB na Itália.
Além disso, os relatórios mostram outro triunfo dos combatentes da FEB, que foi a rendição de 15 mil alemães, inclusive dois generais inimigos. O pracinha brasileiro, que saiu desacreditado do país, lutou como herói, mas teve que enfrentar as intempéries da Europa.
Enquanto os soldados lutavam na Itália, a situação política interna era grave. Dutra, então ministro da Guerra, apresentou ao presidente Getúlio Vargas o retrato sombrio do país, destacando a reação da população em torno dos problemas causados pelo conflito. Os principais fatos do período serão mostrados na série de reportagens que começa hoje e termina na quinta-feira, com uma apresentação da atual situação de quase abandono dos heróis brasileiros da 2ª Guerra Mundial.
Vila militar, Rio de Janeiro, março de 1844
Pouco mais de 5 mil homens estão reunidos e esperando o momento de embarcar para Nápoles. Ali está o perfil do brasileiro da época. Pelo menos, o da classe baixa. Pessoas pobres, com capacidade física precária, vindas de todas as regiões do país. E foi com esse contingente que o Brasil realizou seus principais feitos na Itália: a tomada de Monte Castelo e a prisão de 15 mil alemães, incluindo dois generais. Os relatórios secretos da guerra obtidos pelo Correio mostram que o país não estava preparado para a batalha.
Mesmo com uma população de 42 milhões de habitantes na época, o Brasil teve grandes dificuldades para recrutar o primeiro grupo que iria desembarcar na Europa. Precisou abrir mão de exigências sobre o perfil do efetivo ideal e amargou dificuldades ao preparar esses homens para enfrentar as tropas alemãs e italianas. Mas os relatos feitos pelo comandante da Força Expedicionária Brasileira (FEB), general João Batista Mascarenhas de Morais, ressaltam que as dúvidas sobre o potencial combativo desses homens foram aos poucos sendo dissipados pela brava atuação em combate.
Para ir à guerra, segundo os relatórios, os soldados não poderiam ter pés chatos, sofrer de doenças venéreas, de problemas pulmonares e cardíacos e precisavam possuir pelo menos seis pares de dentes articulados. As dificuldades para selecionar homens com o perfil ideal ocorriam em todas as regiões do país, segundo Mascarenhas de Morais.
Ele observou que, para alcançar um número mínimo de recrutados para a guerra, foi necessário abrir mão de algumas exigências. “Estabelecendo as condições mínimas a satisfazer para integrar a FEB, diversas juntas de inspeção, em todas as regiões interessadas, começaram seu penoso trabalho, constatando-se desde logo, as maiores decepções, pela massa de homens, oficiais e praças que nem sequer se classificavam na categoria de ‘normais’ (a classificação exigida inicialmente era chamada de ‘especial’, com aptidões físicas excelentes, ficando os ‘normais’ impedidos de participar da guerra)”, descreveu o comandante.
Em seu relatório secreto, Mascarenhas de Morais mostrou, por exemplo, que em São João Del Rey (MG), apenas um capitão, um sargento e um soldado conseguiram a classificação “especial”, a exigida para compor a FEB. “O mesmo descalabro se assinalava em todas as outras unidades. Tão calamitosa apresentou -se a situação que a diretoria de saúde recebeu instruções para admitir, também, os homens da categoria ‘normal’”, escreveu o general. Até a exigência de homens com dente perfeitos, conforme a determinação norte-americana, foi reduzida. “Na organização dos três primeiros escalões que formaram o grosso da nossa 1ª DIE, não levamos em consideração a insuficiência dentária, porquanto não podíamos exigir muito, nesse sentido, da nossa gente, sabido que somente as pessoas de algum recurso, nos grandes centros, tratam dos dentes”, afirmou o então ministro da Guerra, Eurico Gaspar Dutra, em um outro relatório enviado ao presidente Getúlio Vargas, em 1944.
Dissabores e vexames
Porém, a redução das exigências traria “amargos dissabores e pesados vexames” na chegada ao exterior, como revelou Mascarenhas de Morais. Ao chegar em Nápoles, os 5 mil combatentes da FEB passaram por uma inspeção de saúde, tendo sido constatada a necessidade de se fazer 20 mil extrações. O relatório do ministro da Guerra complementa: “Das baixas verificadas na Itália ao chegar o 1º Escalão, 70% eram ocasionadas pelas doenças venéreas contraídas no Brasil”. Ainda durante a viagem, foram descobertos casos de tuberculose e caxumba.
“Foi grande o trabalho de preparar homens para a guerra, a fim de que o Brasil cumprisse sua palavra empenhada. Os esforços despendidos por nós para preparar 5 mil homens é (sic) bem maior do que outra nação adiantada para organizar um contingente de 25 mil homens. A subnutrição, a falta de higiene e a sífilis, as três em ação combinada com o analfabetismo, são elementos negativantes na formação de qualquer tropa em terras brasileiras”, relatou Dutra a Vargas.
O Norte do país, até então uma região desconhecida e com pouca ligação com os grandes centros, foi onde o recrutamento mostrou a realidade do povo brasileiro. De 3.715 homens inspecionados no Amazonas, Pará e nos então territórios do Acre, Rio Branco (hoje Roraima), Guaporé (RO) e Amapá, apenas 846 foram considerados aptos e 77,2% dispensados. “Isto confirma, claramente, o conceito de que o amazônida é um tipo fisicamente fraco já pela sua alimentação já mesmo pelas condições biogeográficas do imenso anfiteatro amazônico”, escreveu Dutra.
Dúvidas
Mas não era apenas a Amazônia que apresentava os mais sérios problemas. Minas Gerais, mesmo sendo um dos estados mais importantes do país, teve 77% de seus 4.220 inspecionados considerados incapazes. O maior problema dos mineiros era a insuficiência de dentes. “Há necessidade de uma ação governamental incisiva para combater os males sociais que afligem nossa população: o analfabetismo, o baixo estalão de vida, a alimentação parca e pouco nutritiva, a higiene precária, a sífilis, a lepra e as doenças venéreas”, recomendou Dutra a Vargas.
Por causa do perfil, Mascarenhas de Morais contou que havia uma incerteza quanto ao comportamento do soldado brasileiro na Itália, eliminada logo nas primeiras batalhas. “Sua ação em combate, em lugar de ser encarada como um simples dever de cidadão, servia para estimular-lhe a vaidade, tornando-o importante diante de si mesmo, e o levava a se vangloriar de seus feitos”, escreveu o comandante da FEB.
Segundo ele, esse fenômeno, que deve ser levado à conta de uma educação falha, não diminuía a sua qualidade de combatente. “Pelo contrário, servia como um incentivo para o seu espírito de corpo, pois sua vaidade o levava a julgar o seu regimento como o melhor da divisão, assim como seu batalhão o melhor do regimento, e assim, sucessivamente, até garantir que o melhor dos batalhões era o seu”, observou o general.