Entre as comemorações, o comandante do Exército Constitucionalista, de 99 anos, passou o cargo para uma mulher
Valéria França
Ontem foi um dia especial para o paulistano Oswaldo Diana, de 99 anos. Ansioso, ele acordou cedo, às 5 horas, se arrumou, tomou café e saiu acompanhado da filha, a advogada Orivalda Argentina Diana, que mora com ele em Itaquera, bairro da zona leste de São Paulo. "Minha casa é pequena, mas fica um pouco camuflada pelo mato do terreno. Não chamo ninguém para apará-lo, porque, hoje em dia, a gente nunca sabe: contrata alguém para trabalhar e acaba sendo assaltado ou morto."
Quando Oswaldo fechou a porta de sua casa pela manhã, um carro oficial esperava do lado de fora para levá-lo ao Ibirapuera, na zona sul, onde aconteceram as comemorações do 9 de Julho, data oficial do início dos confrontos da Revolução Constitucionalista de 1932.
Lúcido, com força física para agüentar duas horas e meia de desfile, Oswaldo foi deixado pelo carro oficial no palanque montado em frente do Obelisco. O ex-soldado, que ficou apenas oito anos na Força Pública, ganhou aplausos até do prefeito Gilberto Kassab. "Estou tão feliz. Hoje é o grande dia", disse Oswaldo.
Usando capacete e com três medalhas penduradas na lapela do paletó, Oswaldo tinha, no entanto, uma missão: transmitir seu cargo, o de comandante do atual Exército Constitucionalista, para Dirce Rudge Pacheco, de 89 anos, a primeira mulher a ocupar esse posto.
O ex-soldado relembrou seus feitos de guerra, de como já fora destemido. "Não tínhamos munição. Por isso, eles inventaram a matraca, que imitava o som dos tiros, e o inimigo recuava. Tivemos problemas até com as balas dos fuzis. Recebemos uma remessa, feita pela indústria Matarazzo, mas o calibre não combinava com o orifício da arma. Tínhamos tudo para perder, mas ninguém tinha medo."A platéia ouviu atenta.
O dia também foi especial para Dirce. Ao som da marcha Paris Belfort, interpretada pela banda da Polícia Militar, ela recebeu o cargo das mãos de Oswaldo. E discursou pela primeira vez para autoridades militares e civis. Emocionada, gaguejou e trocou palavras. No final, para completar seu momento mágico, deu permissão para que começasse o desfile. "Isso foi uma homenagem às 72 mil mulheres que ajudaram na Revolução", disse o coronel Mário Ventura, secretário da Sociedade Veteranos de 1932.
"Eu tinha 14 anos, na época, mas ajudei fazendo meias, cachecol e malhas de tricô para os combatentes", diz ela, caçula de 13 irmãos. Na Revolução de 32, sua casa foi transformada numa grande oficina de costura. "Eu não tinha consciência política. Mas todos estavam animados por dias melhores."
Trinta e seis anos depois da Revolução, então viúva duas vezes, Dirce se casou com José Carlos Barros Lima, o médico que examinou e selecionou os soldados inscritos para o combate de 9 de julho.
"Quarenta e seis mil homens se apresentaram, mas apenas 18 mil estavam aptos", disse Ventura. "As mulheres empurravam os maridos para o front."Muitas delas, principalmente as costureiras, diziam que, se não fossem à luta, eles teriam de usar saias em casa. "Trabalhamos muito, na época. Mas nunca imaginei que acabaria comandante de um Exército por ter feito tricô no passado", disse ela, que, no final das apresentações, foi para casa feliz, paparicada pelo filho e pelo neto, que estavam bem orgulhosos da matriarca da família.
"Precisamos cuidar dos nossos veteranos", diz Ventura. "Esse é um dia muito especial para eles.
A emoção é tão grande que, na década de 90, um deles enfartou ao colocar o capacete para desfilar."
Dirce e Oswaldo já entraram em contagem regressiva para as comemorações do ano que vem.