Mario Cesar Flores
Almirante-de-esquadra (reformado)
O poder militar brasileiro só é lembrado hoje na síndrome da (in)segurança pública, não há preocupação com a defesa. A questão existencial das Forças Armadas emerge naturalmente dessa situação: o que lhes cabe agora? Este artigo esboça uma idéia de resposta e tem por alvos o mundo político e a sociedade, desinteressados pelo tema; na política, porque não são percebidas ameaças, mas também porque a defesa nacional não gera votos.
A realidade brasileira sugere que nossa visão da defesa nacional observe esta premissa sóbria: embora atento às questões humanitárias e ambientais e com interesses econômicos globais, na segurança deve o Brasil priorizar seu território e entorno, continental e marítimo. Fora desse cenário, a defesa de seus interesses e perspectivas se insere na ordem em que lhe cabe contribuição coadjutora ou simbólica.
A ênfase regional merece um comentário sobre a segurança coletiva, da natureza do Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (Tiar), inspirado na ameaça comum da guerra fria. A retórica “bolivariana” que vê nos EUA razão para um esquema regional daquela natureza não é corroborada pela América do Sul em geral. Na verdade, alguns de nossos vizinhos vêem no Brasil um vago motivo de cuidado, decorrente da História e da assimetria; nessas circunstâncias, tal esquema seria mais fonte de atritos que solução de problema inexistente. É esse também o caso da união militar “... para defender a grande pátria que somos...”, sugerida por Hugo Chávez, sem esclarecer a ameaça e a solução das divergências na “grande pátria”, questão não resolvida nem na União Européia! Em suma: a defesa não é propensa a concessões e compromissos, salvo sob grave ameaça comum.
Não existem pendências territoriais entre o Brasil e seus vizinhos, e eventuais tensões decorrentes do uso de recursos naturais e de problemas ambientais admitem soluções negociadas, como admitiu o caso Itaipu x Corpus e deve admitir o das hidrelétricas do Madeira. Mais ainda se a democracia vingar na região - o que está em risco - e se o Brasil contar com poder militar que persuada a conveniência da negociação. Quanto à por vezes aventada possibilidade, hoje mais passional que racional, de coerção em força por grande(s) potência(s), no quadro ambiental da Amazônia, ela é por ora implausível, e é de supor que cuidados brasileiros a manterão assim; novamente, mais ainda se nosso poder militar sugerir custo alto à coerção.
Mas, embora pequena a probabilidade de conflitos interestatais envolvendo o Brasil, não estamos imunes a problemas de segurança. Realçam hoje os delitos da criminalidade transnacional e organizada, que superam a capacidade policial e exigem atuação militar; neste aspecto em particular, ainda que eventualmente não apenas, nas permeáveis fronteiras terrestre e marítima e no espaço aéreo. Delitos que podem justificar segurança compartida distinta da concepção do Tiar, porque limitada pelo interesse comum específico, quanto à participação, área abrangida, prática operacional e vigência.
Ademais, em razão de seus interesses e peso regional, o Brasil não pode ser indiferente à desordem em seu entorno, aos conflitos internos - que nem sempre respeitam fronteiras - e interestatais por contenciosos territoriais e divergências sobre recursos naturais, mais prováveis se houver retrocesso no clima democrático. Deve estar atento na proporção da natureza e gravidade, de preferência em consenso regional em que lhe cabe responsabilidade, sob pena de abdicação da sua posição relativa - o que supõe poder militar crível no apoio à estabilidade e ordem, ao ideal jurisdicista da nossa tradição.
Um breve parêntese sobre a ordem interna: o poder militar deve poder, de acordo com a lei, garantir a ordem legal, episodicamente, onde e se a ação policial é inviável, ou insatisfatória porque as características “daquele problema” transcendem a capacidade policial. Mas o poder militar na rotina da segurança pública, além de duvidoso resultado, é inconveniente porque prejudica sua missão precípua e o compromete em questões internas além do razoável numa democracia.
Ordem interna à parte, porque fora do escopo deste artigo, as circunstâncias cogitadas sugerem capacidade militar comedida, mas convincente, que, além da missão clássica - respaldar a negociação política, dissuadir, abortar ou ao menos cobrar custo alto para qualquer ameaça de Estado, improvável, mas não impossível no mundo de Estados com interesses distintos -, seja capaz de controlar conflitos irregulares e ilícitos em geral, nas regiões fronteiriças terrestres, no mar costeiro e no espaço aéreo, e de contribuir, como exigido pela situação e pelo peso relativo do Brasil, para a ordem e segurança na América do Sul e no Atlântico Sul, sobretudo em suas águas ocidentais. Em nível global, ser capaz de cooperação coadjutora, crescente com a evolução do Brasil no mundo.
A premissa inicial, a avaliação de problemas preocupantes - um armamentismo regional instigante, por exemplo - e uma orientação do tipo da esboçada acima são da esfera política, com assessoramento estratégico. Cabe ao Ministério da Defesa e às Forças por ele coordenadas desenvolver, sem ufanismo inócuo, as concepções estratégicas, a organização, a doutrina e o preparo que respondam à moldura política. No tocante ao preparo, convém-nos aproveitar o não estar o Brasil sujeito à necessidade de armamentismo apressado para buscar a tecnologia coerente com o poder militar pretendido, implantando-a na sua indústria - condição da credibilidade militar moderna.
Crescerá assim a dimensão estratégica brasileira, a caminho da coerência com a dimensão econômica e em apoio à posição internacional do Brasil. Inclusive à pretensão à condição de membro permanente do Conselho de Segurança da ONU, difícil por mera volição política sem capacidade para honrá-la, que não teremos enquanto não resgatarmos a defesa nacional do ostracismo.