Por HUGO STUDART, CLÁUDIO CAMARGO E ELIANE LOBATO
As duas decisões são estratégicas para o País, mas são contraditórias e a tendência do governo é aprovar as duas, esquizofrenicamente. Nos próximos dias, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva deve convocar uma reunião secreta do Conselho de Defesa Nacional para examinar o Plano de Reaparelhamento das Forças Armadas. O projeto prevê investimentos de R$ 5,5 bilhões até 2011, só em equipamentos, a maior parte com tecnologia e produção nacionais. “Reaparelhamento não me parece o termo adequado; é aparelhamento”, diz o ministro da Defesa, Nelson Jobim. Ao Exército, serão destinados R$ 2 bilhões, principalmente para a compra de blindados sobre rodas. A idéia é incentivar a criação de uma nova indústria de carros de combate, como a falecida Engesa dos anos 70 e 80. Para a Marinha, irá R$ 1,5 bilhão, destinado prioritariamente à construção de nosso primeiro submarino nuclear, a ser lançado em 2013. A Aeronáutica vai abocanhar outros R$ 2 bilhões para adquirir – e depois produzir aqui mesmo, em parceria com a Embraer –, caças de última geração, como o francês Rafale. Mas ao mesmo tempo, o governo vai comprar, por US$ 180 milhões, 12 helicópteros de ataque russos Mi-56 (Nota Defesa@Net: Trata-se do helicóptero Mi-35). A compra deve ser assinada na próxima semana pelo comandante da Aeronáutica, tenente-brigadeiro Juniti Saito. Em troca, a Rússia comprará carne e frango do Brasil. A contradição está justamente nisso: não haverá nenhuma transferência de tecnologia para o Brasil. A Força Aérea não queria os helicópteros russos, entre outras coisas porque eles não têm garantia de manutenção. A intenção da FAB era encomendar os novos helicópteros à indústria Helibrás, que já fabrica no País os Esquilo de uso civil, sob licença da Eurocopter. A Aeronáutica negociava com os europeus a transferência de tecnologia para a Helibrás produzir também o Cougar e o Pantera por aqui. Então por que o Brasil está comprando os Mi-56 russos? Porque, em fins do ano passado, o então ministro do Desenvolvimento, Luiz Fernando Furlan, negociou um escambo comercial com o governo de Vladimir Putin. Os russos abriram o mercado para a importação de frango e carne brasileiros. Como contrapartida, Furlan comprometeu-se a comprar equipamentos militares russos. Originalmente, eram 40 helicópteros, 12 Mi-35, de ataque e 28 Mi-171, de transporte. O Planalto tentou empurrar o pacote para o Exército; não teve êxito e a Aeronáutica teve que ficar com o embrulho. Os militares ainda conseguiram barrar os de transporte e ficaram só com os de ataque. De qualquer forma, essa é uma decisão completamente oposta à idéia de reaparelhar as Forças Armadas através do fortalecimento da indústria bélica brasileira. Exército, Marinha e Aeronáutica vivem uma situação de total incúria. Gastam pouco, gastam mal e o que têm está sucateado. No final da década de 80, o Brasil tinha uma das indústrias bélicas mais pujantes do mundo; hoje, algumas delas, como a Engesa – fabricante dos blindados Urutu e Cascavel –, faliram; outras não têm como atuar. A Mectron, fabricante dos mísseis Piranha, a Orbisat tem o protótipo de um dos mais modernos radares de baixa altura do mundo, mas, como não têm encomendas militares, vive a bisonha situação de sobreviver da fabricação de fechaduras e capacetes para empresas de segurança. A Avibrás, pioneira na pesquisa espacial, hoje não tem recursos (nem encomendas) para tirar da prancheta os mísseis de precisão que seus engenheiros ainda concebem. Das primeiras indústrias militares, sobrou inteira somente a Embraer – mas porque pôde se reinventar na aviação comercial. E a Imbel, fabricante de armas leves, hoje vive de vender pistolas. Aguarda uma encomenda do Exército de 175 mil fuzis 5.56, que vão substituir os velhos FAL. “A Imbel, como as demais, tem que ser encarada como uma indústria estratégica”, diz o general Darke Nunes, chefe do Departamento de Ciência e Tecnologia do Exército. A modernização das Forças Armadas é necessária não porque exista algum inimigo do Brasil à espreita, mas porque é estratégico para nossas ambições futuras. Na maior parte dos países emergentes, gasta-se em média 8% do PIB com defesa. O Brasil, que já gastou 7%, hoje destina 1,8%, a menor porcentagem da América Latina. O Chile gasta 10%. “O orçamento do Exército brasileiro é menor do que o das Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia)”, ironiza um oficial. Da parte que cabe ao Exército, nada menos que 82% são consumidos com salários; o resto é para custeio e investimentos. “Hoje não temos artilharia sequer para defender o complexo industrial de São Paulo ou nossas hidrelétricas”, lembra Nelsimar Vandelli, coordenador do Centro de Atividades Externas da Escola Superior de Guerra. Estrategistas dizem que é temerário aferrar-se à velha tese de que somos um povo pacífico e não estamos sob ameaça – e que, portanto, não precisamos de Forças Armadas. Alguns lembram o rearmamento da Venezuela e o conflito com a Bolívia, mas a maioria vê ameaças mais sérias e menos evidentes. A Amazônia, que detém 20% da água potável do planeta e esconde outro tesouro sob a forma de minerais, já está sendo atacada de forma silenciosa por ONGs estrangeiras, que difundem a idéia da internacionalização da floresta. “Chegará o momento em que organismos internacionais vão construir a tese de que não sabemos cuidar da Amazônia e que, para o bem da humanidade, exércitos estrangeiros precisam intervir”, diz um membro do Alto Comando do Exército. Na plataforma continental, chamada de Amazônia Azul, a Marinha não consegue vigiar a pesca predatória estrangeira. “Também é no mar que estão 85% do nosso petróleo”, lembra Saturnino Braga, ex-presidente da Comissão de Defesa do Senado. E se as plataformas da Petrobras forem atacadas por terroristas? “Por isso é preciso ter Forças Armadas bem equipadas e treinadas.” A Marinha, aliás, atravessou décadas de uma situação inusitada. Parte do almirantado defendia uma armada de ataque, baseada em porta-aviões. Outra facção queria uma marinha dissuasória, com submarinos – de preferência nucleares. A força apostou nos dois caminhos e hoje tem um poder capenga. Agora, o governo decidiu investir na conclusão do submarino nuclear. Pouco antes, a Marinha optara por encomendar à Alemanha um submarino U-214, convencional, sob o argumento de dar continuidade ao U-209, modelo dos cinco submarinos atuais. Ainda não existe nenhum exemplar do U-214 em operação; o primeiro, entregue à Grécia em 2006, apresentou tantos defeitos que a Marinha grega recusou seu recebimento. O pior é que está em curso uma operação para adquirir o sistema de armas do submarino – o software que determina todo o tipo de armamento que um submarino poderá utilizar. É uma “caixa-preta” fornecida pela americana Lockheed Martin, como foi anunciado pelo US Strategic Cooperation. Reproduz-se, aqui, o choque entre uma concepção utilitarista e uma visão de longo prazo. O argumento dos primeiros é que “nenhum país transfere esse tipo de conhecimento”. De fato, os americanos não fazem isso mesmo, mas russos e franceses sim. Países como Índia, Paquistão, Austrália e China, aliás, já mostraram como é possível usar o offset tecnológico para exigir transferência real de tecnologia. “ TEMOS QUE TRAZER TECNOLOGIA ” O presidente da Fiesp, Paulo Skaf, é um entusiasta da recriação da indústria de defesa nacional. “Nossa visão é que a Defesa não é uma indústria normal, como qualquer produto que se compre ou se venda”, diz Skaf. “Quando falamos de Defesa, estamos falando de soberania nacional. Não se pode comprar equipamentos militares em troca de commodities”, alfineta o empresário, citando o caso dos helicópteros russos. “Temos que pensar em trazer tecnologia.” Skaf criou na Fiesp o Comitê da Cadeia Produtiva da Indústria de Defesa (Comdefesa), um fórum de discussão do tema que reúne empresários e oficiais-generais. “O Brasil deixou de produzir material bélico, criou-se uma defasagem e, para minimizar essa obsolescência, optamos por importar significativa parcela do equipamento militar”, completa Jairo Cândido, presidente do Grupo Inbrafiltro e coordenador do Comdefesa. “Para piorar, o sistema tributário brasileiro penaliza a indústria de defesa. Um produto adquirido no Exterior custa às Forças Armadas 42% menos que o mesmo material produzido no Brasil”, diz Cândido.