Analistas advertem que, mais do que vigilância na Tríplice Fronteira, aliança estratégica americana com o Paraguai permite que Washington ganhe poder de barganha dentro do bloco regional
Sheila Machado - Jornal do Brasil
Com a justificativa de estarem preocupados com a instabilidade política de Bolívia, Venezuela e Equador, os Estados Unidos elegeram o Paraguai seu novo aliado estratégico na América do Sul. Soldados americanos estão na região do Chaco, com uma missão denominada humanitária, com destacamento de médicos militares e treinamento de policiais e militares paraguaios. Na teoria, a operação acaba no fim do ano que vem. Mas a ampliação da base de Mariscal Estigarribia, onde estão instalados, sugere que as tropas vão permanecer por mais tempo. À primeira vista, pode parecer que a principal preocupação de Washington é vigiar a Tríplice Fronteira, de onde acredita que partiriam financiamento para ações terroristas, ou ficar de olho no líder venezuelano Hugo Chávez. Mas para analistas consultados pelo JB, a aproximação entre os dois países tem um objetivo mais amplo: fazer do Paraguai a voz dos EUA no Mercosul, capaz de aproveitar espaços deixados por eventuais desavenças entre os principais integrantes do bloco.
- A Casa Branca iniciou uma nova política estratégica, pois não tem nenhum outro aliado no Cone Sul, países são em sua maioria críticos a Washington. A escolha por Assunção não é surpresa. O Paraguai é mais aberto aos americanos, tanto a elite quanto a maioria da população. São mais influenciáveis do que na Argentina, por exemplo - explica Marta Lagos, diretora do instituto de análise política sul-americana Latinobarómetro.
Um dos motivos, aponta a cientista política paraguaia Milda Rivarola, é a personalidade da administração de Nicanor Duarte, ''na contramão das tendências social-democratas dos demais membros do Mercosul: Argentina, Brasil e Uruguai''.
- Além disso, há a debilidade da política externa, suscetível a alinhar-se com uma potência exterior em troca de promessas de abertura de mercado a o que quer que seja. Dessa vez, a negociação é da entrada de produtos têxteis paraguaios na Flórida - conta.
Para Washington, afirma Lagos, conseguir ter representação de seus interesses dentro do Cone Sul pode significar a manutenção da hegemonia mundial, pelo menos econômica, a longo prazo:
- Os EUA estão preocupados com o papel que a China pode ter no Mercosul. Os chineses são um poder econômico que cresce a cada dia e voltam suas atenções para a América do Sul. Os americanos temem perder influência na região. Ou pior, serem dominados por Pequim que, com mais aliados, teria mais poder político e de barganha.
Carlos Pereyra Mele, do Centro de Estudos Estratégicos Sul-Americanos (CEES), não mede palavras ao comentar a aproximação entre EUA e Paraguai.
- É uma cacetada no Mercosul. O que Washington quer é desestabilizar um mercado que não segue suas imposições - afirma.
A questão econômica foi justamente a justificativa paraguaia para deixar Argentina e Brasil um tanto de lado e se voltar aos EUA. Em entrevista ao jornal Última Hora, de Assunção, o vice-presidente Luis Castiglioni criticou os vizinhos.
- Aqui na região só tivemos decepções. Onde está o espírito de solidariedade quando até agora seguimos suportando os impedimentos à exportação? Não necessitamos de migalhas. O Paraguai precisa e tem o direito de buscar um relacionamento digno com outras nações - disse Castiglioni, comentando a criação pelo Mercosul dos ''fundos estruturais''. - Não queremos doação de dinheiro, queremos mercado.
- Argentina e Brasil vêm subestimando Uruguai e Paraguai no âmbito do bloco e essa é uma atitude que deveria ser corrigida - concorda Rosendo Fraga, analista do instituto Nueva Mayoría, de Buenos Aires.
Segundo o cientista político, os EUA estão explorando não só o desequilíbrio mercantil, mas também o passado do Cone Sul:
- Sem dúvida, o menosprezo que o Paraguai sente tem raízes históricas na Tríplice Aliança [formada por Brasil, Argentina e Uruguai, que entre 1864 e 1870 atacaram o vizinho, na Guerra do Paraguai].
A aproximação entre Washington e Assunção significa ainda uma mudança da política ianque não só em relação ao Mercosul. A curto prazo, e em caso de emergência, diz respeito à toda a América do Sul. Fraga lembra que a prioridade da Casa Branca para o segundo mandato de George Bush era clara: delegar ao Brasil a liderança regional, tendo o presidente Luiz Inácio Lula da Silva como um homem respeitado o suficiente para conter a influência de Chávez no continente.
- Mas a força de paz da ONU que atua no Haiti, sob comando brasileiro, gerou dúvida no Pentágono sobre se o Brasil está disposto a usar força em caso de desestabilização na região. Neste momento, Lula encontra-se acuado pela crise política; em conseqüência, diminuiu sua capacidade de contrabalançar o venezuelano como ator político. Além disso, Chávez demonstra claro interesse de investimento na Argentina, Brasil e Uruguai, mas não no Paraguai. Estes fatos levaram o secretário de Defesa americano, Donald Rumsfeld, a visitar Assunção duas vezes este ano e a procurar estabelecer ali um ponto de apoio para intervir, se houver crise - completa.
Recursos naturais chamam a atenção
Além da estratégia político-econômica, outras razões se delineiam para os Estados Unidos terem escolhido o Paraguai como parceiro na América do Sul e a base militar de Mariscal Estigarribia como local de estabelecimento de suas tropas. A instalação fica a
- O conflito Ocidente-Oriente aprofundou objetivos de estratégia. Os EUA buscam controlar recursos renováveis e não-renováveis - adverte Carlos Pereyra Mele, do Centro de Estudos Estratégicos Sul-Americanos.
Washington e Assunção negam qualquer interesse nesse sentido, dentro do acordo de permissão de exercícios militares americanos. Mas chama a atenção também a proximidade do aqüífero Guarani, uma das maiores reservas de água doce do mundo, que cobre uma área de 1,2 milhão de km² na América do Sul. O Brasil abriga 70% do tesouro, 19% está na Argentina, 6% no Paraguai e 5% no Uruguai.
- O alerta é da ONU: daqui a 20 anos as guerras não serão mais por petróleo, mas por água - lembra Mele.
A presença militar americana em solo paraguaio não é permanente. Mas é renovável. E não agradou aos parceiros do Mercosul, principalmente Brasil e Argentina, embora estes não possam fazer nada para impedir.
- O Paraguai pode trazer os EUA para casa, porque é soberano. Mas na esfera de acordos de cooperação militar é de bom tom consultar os vizinhos do bloco. A situação é delicada - avalia Clóvis Brigagão, do Centro de Estudo das Américas.
Os países-membros do bloco do Cone Sul só poderiam levar a questão a órgãos internacionais, como a ONU ou a Organização dos Estados Americanos (OEA), se seu espaço aéreo ou terrestre fosse violado pelos ianques.
- A continuidade da missão americana vai depender principalmente da mobilização civil dos paraguaios. É dever do povo obrigar o presidente Nicanor Duarte a retificar a atitude - resume Mele.
Mas em pelo menos uma questão o Paraguai passou por cima da diplomacia. Mesmo sendo signatário do Tratado de Roma - que em 1998 relativizou o conceito de soberania para permitir que autores de crimes contra a humanidade fossem julgados por tribunais internacionais -, Assunção concedeu imunidade penal às tropas americanas. Isso significa que, caso os soldados pratiquem homicídio, genocídio ou outros delitos, estão livres de responder por eles no sistema judiciário local ou na Corte Penal Internacional, em Haia.
- Politicamente, é muito difícil os países do Tratado de Roma se reunirem para examinar uma punição ao Paraguai pelo descumprimento do acordo - lamenta Brigagão.