Alexandre Reis Rodrigues - Jornal Defesa e Relações Internacionais
Nunca houve um verdadeiro equilíbrio entre os arsenais nucleares das duas superpotências durante a Guerra Fria; os EUA sempre mantiveram alguma vantagem e não só no campo tecnológico. Havia, no entanto, um esforço das duas partes por manter o “desequilíbrio” dentro de limites que não afectassem a estabilidade do balanço nuclear, tal como prescrito no conceito da “destruição mútua assegurada”, adoptado pelos dois lados.
Tudo isto, porém, é hoje coisa do passado. A Rússia não só perdeu a Guerra Fria como perdeu também a corrida aos armamentos que as duas potências mantiveram até alguns anos antes da “queda do muro de Berlim”. Inevitavelmente, os acordos que procuravam garantir a “paridade”, passaram a ser olhados de forma diferente por cada potência.
Para os EUA, então seguros que a Rússia não poderia continuar a investir como no passado, os acordos passaram a ser um empecilho à estratégia de aumento e consolidação da vantagem que, afinal, sempre tiveram. Para a Rússia, porém, passaram a representar precisamente o contrário: a única hipótese de continuarem a falar de igual para igual com os EUA e de lhes permitirem “negociar” o abandono dos seus armamentos mais antiquados e mais dispendiosos por reduções, pelo menos quantitativamente semelhantes, no arsenal americano.
Tudo se complicou em 2002, com o abandono do Tratado Antimísseis Balísticos pelos EUA, passo indispensável para o desenvolvimento do seu projecto de construção de um Escudo de Protecção Antimísseis Balísticos. Falou-se, então, muito no risco de um retorno à corrida aos armamentos da Guerra Fria presumindo-se que a Rússia poderia sentir-se compelida a melhorar os seus arsenais nucleares, como forma de compensar a capacidade de intercepção que os EUA estavam a desenvolver e que poderia desfazer irreversivelmente o restante do equilíbrio ainda existente.
No entanto, a Rússia pareceu resignar-se, mau grado os protestos que fez e as tentativas de acerto de uma estratégia com a China para contrariar a iniciativa americana. Putin talvez ainda não se encontrasse seguro da possibilidade de repor a Rússia na arena internacional como uma grande potência que é preciso ouvir atentamente e acabou por ser relativamente modesto nas suas reacções. Os receios dos europeus de que a resposta fosse mais dura não se confirmaram; Bush, afinal, parecia estar certo na sua avaliação dos riscos da sua política e o Escudo de Protecção recebeu fundos substanciais para avançar a passos mais largos, como uma das grandes prioridades da estratégia de defesa americana.
Agora é tudo diferente; Putin descobriu o valor da “arma da energia” e passou a usá-la em termos políticos, logo a começar na sua área de influência próxima, deixando de premiar com preços baixos quem não correspondia com a necessária fidelidade. Sabendo que isso poderá não chegar para parar o avanço americano pela sua área de influência tradicional procura outras formas de arranjar mais “peso”. Não é difícil compreender que voltar as costas ao Tratado sobre Mísseis de Alcance Intermédio (Tratado IMF)[1] e retomar a construção deste tipo de mísseis, abandonada há anos, pode ser uma poderosa ferramenta para atingir esse objectivo.
A “manobra” merece cuidada atenção, logo em primeiro lugar por parte dos europeus que, sendo os potenciais alvos dessas armas, muito naturalmente irão interrogar-se até que ponto isso alterará o quadro de segurança em que têm vivido desde o fim da Guerra Fria. As respostas variarão entre o apoio inequívoco e a oposição frontal ao projecto americano o que não vai obviamente ajudar a construir uma visão comum europeia sobre as necessidades de segurança da Europa nem a recuperar o relacionamento transatlântico.
A Rússia, como se calcula, encarará esta situação como um “ganho” e com a seguinte vantagem adicional: tem agora a possibilidade de desviar a corrida aos armamentos de onde os EUA podem tirar partido das suas vantagens tecnológicas e financeiras – por exemplo, os mísseis balísticos intercontinentais – para onde têm mais hipóteses de ganhar um novo peso negocial e daí lançar um desafio aos EUA – os mísseis de alcance intermédio. Em conclusão: em vez da hipótese de uma parceria estratégica entre as duas potências o que temos hoje é uma agudização do seu relacionamento. Más notícias que os EUA tentam agora amenizar com um novo esforço de clarificação das suas intenções.
O que está no centro desta questão é – como vimos atrás – o Escudo de Protecção Antimísseis Balísticos; só que hoje, curiosamente, o seu impacto é exactamente o oposto do que foi quando Reagan lançou o projecto da Guerra das Estrelas. Nessa altura, foi a iniciativa de Reagan que levou a União Soviética – então já economicamente muito debilitada – a aderir às iniciativas de controlo de armamento; hoje, é Bush que com a instalação da componente europeia do Escudo está a levar a Rússia – em rápido crescimento económico – a “ameaçar” abandonar o Tratado IMF. Estamos a voltar à Guerra Fria? Esperemos que não, mas não falta quem diga que já estamos em plena Paz Fria!
[1] Foi assinado a 8 de Dezembro de 1987 em Washington entre Reagan e Gorbatchev, entrando em vigor a 1 de Junho de 1998. Foi a culminação de um processo de 8 anos de conversações, eliminando os mísseis de alcance intermédio (entre 500 e 5500 quilómetros), balísticos ou de cruzeiro e portadores de ogivas nucleares ou convencionais. É o 1º acordo de redução de armamentos assinado entre as duas superpotências. Em 1991, foi estendido a três ex-Repúblicas da USSR (Ucrânia, Cazaquistão e Bielorrússia) e adoptado mais tarde, durante a década de 90, pela Hungria, Alemanha, República Checa e Polónia. A Eslováquia aderiu aos seus princípios em 2000 e a Bulgária em 2002.